Há uns anos, quando um programa televisivo andou a promover qual seria a figura histórica nacional com maior popularidade, foi com grande mágoa, que muitos de nós, vimos a votação concentrar-se em Salazar. Como era possível que, depois de anos de Democracia, ainda houvessem suficientes portugueses disponíveis para corresponderem aos organizadores de sindicatos de votos, apostados em troçarem de quem sofrera com o fascismo para darem imerecida consagração ao ditador?
Concluía-se que se uma boa parte do país execrava esse passado, subsistia uma outra que não só o desculpabilizava como, sobretudo, perdurava uma cultura de valores dele remanescentes.
Lembro amiúde o aforismo de Alexandre O’Neill sobre a vigência desses dias sombrios, em que imperava a regra: “neste País em diminutivo, juizinho é que é preciso”. Mas atrás do juizinho vinham outros valores igualmente repelentes: a caridadezinha, o respeitinho, a humildade.
A caridadezinha foi subsistindo ao longo destes últimos 43 anos sob a forma de correspondermos com esmolas, peditórios, subscrições e outras formas de donativos às vitimas de alguma tragédia circunstancial. Ora, como se viu com os dinheiros entregues à Misericórdia de Pedrógão Grande, que têm tardado a chegar a quem era suposto receber (e sobre quem ninguém volta a verificar se cumpriram os fins em vista), deve ser o Estado a centralizar, definir e distribuir esses recursos. Aqueles que quiseram contribuir diretamente para as Instituições de Solidariedade Social têm justos motivos para, a esta hora, desconfiarem se não andaram a encher os gordos cofres de interesses privados encostados a esse tipo de organizações.
À luz dessa ideologia salazarenta, não tivesse Passos Coelho perdido o pote e veríamos os pensionistas, os reformados, os desempregados crónicos e outros setores desfavorecidos a viverem miseravelmente e umas senhoras muito boazinhas a atribuírem-lhes uma sopinha com que mitigassem a fome e umas roupinhas usadas com que tapassem a nudez. A valorização da Segurança Social enquanto polo fundamental da luta contra a pobreza está a constituir uma espinha cravada na garganta de quem apostara na sua menorização, quiçá privatização de acordo com o modelo vislumbrado no filme de Ken Loach, «Eu, Daniel Blake», que demonstrava o que seria tal estratégia de eugenia social.
Quanto ao respeitinho andou a direita anos a fio a tentar que se traduzisse no pressuposto de competir a governação aos partidos do tal «arco», porque os situados à esquerda do PS (ainda assim só tolerado nos períodos em que chegava ao poder e sempre sabotado na sua ação, quando ela não se coadunava com os interesses ideológicos dos herdeiros do antigo regime) não teriam legitimidade para si, porque blá-blá-blá sobre a Nato, blá-blá-blá sobre a União Europeia, blá-blá-blá sobre o euro, blá-blá-blá sobre outra argumentação qualquer.
Mas concentremo-nos na humildade, que tanto temos encontrado esta semana, ora nos lábios de Marcelo Rebelo de Sousa, ora nos dos dirigentes das direitas, ora nos dos comentadores por elas inspirados.
Não conheço outra cultura onde se dê a importância que o salazarismo impôs como idiossincrasia nacional a essa suposta humildade, mas que se traduz mais corretamente pela humilhação. Do pobrezinho humilde, que aceita a parca esmola espera-se um agradecimento servil ao bom coração, que lha estende. Do trabalhador precário a quem se propiciou emprego mal pago e com horas excessivas - tipo «A Padaria Portuguesa» - espera-se que se curve perante o patrão arrogante e lhe beije o chão acabado de pisar. Esse é o tipo de humildade que as direitas tanto prezam, que Marcelo propôs ao governo e, de facto, remanescida herança de um passado tenebroso.
Por isso não aceito que António Costa tivesse de apresentar qualquer pedido de desculpas. Elas só se justificariam se não tivesse feito tudo quanto estivesse ao seu alcance para combater os incêndios de Junho e do passado fim-de-semana. É licito assacarem-se-lhe culpas por décadas de desleixo, por condições climatéricas particularmente agressivas e por causas ainda por apurar que muitos enquadram em equívocas teorias da conspiração?
A um governante exige-se serenidade no meio da tormenta, confiança em dar o seu melhor a cada momento e visão para identificar os problemas e saber-lhes encontrar as melhores soluções a curto, médio e longo prazo. É isso que o governo está a fazer e dará expressão mais ambiciosa a partir das decisões hoje definidas no Conselho de Ministros extraordinário.
Tem sido lamentável a forma como as direitas cavalgam necrofilamente sobre as tragédias para darem expressão à única estratégia, que lhes resta perante os evidentes sucessos obtidos nestes dois anos nas vertentes políticas, sociais, económicas e financeiras. Humilhadas nas sondagens reais, que foram os votos nas autárquicas, as direitas agarraram-se a esta boia de salvação como única alternativa à sua manifesta incapacidade para pensarem o futuro do país numa formatação distinta da incurável vontade em tudo privatizar e desregular.
Ainda há pouco a Academia Sueca, que atribui os Nobéis consagrou um economista cujos trabalhos têm a ver com a influência dos comportamentos humanos na evolução dos modelos macroeconómicos. Exista otimismo e entusiasmo e os indicadores alavancam-se para além do esperado. Ora é isso que tem sucedido nestes últimos dois anos com as políticas aprovadas pela maioria parlamentar a excederem as previsões mais otimistas de todos os analistas, particularmente dos das instituições internacionais, vocacionados por natureza para desqualificarem os tipos de soluções aqui aplicadas.
Pelo contrário se nos deixamos contaminar pelo medo do Diabo, pela humildade de continuarmos pequeninos e sem ambição - não era Passos quem defendia a competitividade do país através de baixos salários e nenhuns direitos laborais? - entramos em depressão coletiva, quer psicológica, quer económica. É claro que esse é o objetivo das direitas cripto-salazaristas, a que se associou claramente Marcelo Rebelo de Sousa esta semana. Está em todos nós dar a resposta a quem nos quer puxar para baixo, quando tem sido tão sustentada a recuperação do abismo para que nos tinha empurrado a coligação da troika.
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