No verão dos meus dezasseis anos vi-me sujeito a fortes restrições por conta do relativo fracasso escolar, porquanto passara para o sétimo ano do liceu com chumbos a matemática e a filosofia. A severidade do castigo passava por me ver impedido de ir à praia ou continuar a dar cabo das solas dos sapatos nas peladas com os amigos, obrigando-me a estudar de forma a recuperar o atraso suscitado pela inédita condição de semi-cábula.
Estava-se em 1972 e a alternativa era fechar-me no escritório lá de casa e pôr o transístor em som muito baixo para não suscitar a atenção pidesca da minha mãe. A ordem era para me dedicar aos mistérios da trigonometria ou do cálculo vetorial, sem esquecer o manual de psicologia, que constituía o programa do ano escolar entretanto concluído. As notícias projetavam-me então para um dos grandes acontecimentos desse ano de 1972: na Islândia estava a decorrer o jogo do século entre Bobby Fischer e Boris Spassky.
Como era época de Guerra Fria, uns pendiam para o lado norte-americano, eu e muitos outros desejávamos a vitória do soviético.
Entre 11 de julho e 1 de setembro fui acompanhando as vicissitudes do movimento das peças no tabuleiro, antipatizando com a excentricidade de Fischer e irritando-me com a falta de imaginação de Spassky, aparentemente incapaz de sair da racionalidade dos movimentos canónicos para corresponder eficazmente às originalidades do adversário.
Lembrei-me desse verão de há quarenta e cinco anos atrás a propósito do confronto não declarado, mas óbvio nos bastidores, entre Marcelo e António Costa. É que os jogos de xadrez, como muitos outros, prestam-se a pertinentes metáforas sobre cada momento político.
No discurso de Oliveira do Hospital, Marcelo parece ter posto o primeiro-ministro em xeque. Embora adivinhassem que a jogada muito distava do almejado xeque-mate, as direitas e os comentadores a ela enfeudados regozijaram-se com a perspetiva de verem Costa em dificuldades.
Desconfio, porém, que Marcelo teve, então, o seu momento islandês - não esqueçamos que Fischer e Spassky disputaram as partidas desse campeonato em Reiquiavique - e que a capacidade de se sentir vitorioso quedar-se-á por aqui. Sobretudo, porque se continuar a apostar na excentricidade de ser um Presidente, que deixa a gravitas em casa para andar de terra em terra a distribuir afetos e a tirar selfies, a receita esgotar-se-á perante os três anos, que aí vêm, presumivelmente marcados pelo sucesso das políticas económicas, financeiras e sociais do governo e, sobretudo, com a desejável prevenção de novas tragédias através da implementação das políticas ontem aprovadas em Conselho de Ministros extraordinário. É que, se Marcelo iguala Fischer no comportamento pouco convencional para a função que representa, António Costa lembra Anatoly Karpov em vez do cinzento Spassky. A racionalidade, a frieza com que encara os problemas e lhes garante as melhores soluções, abrem expectativa para duradoura vida útil dos seus governos ao contrário do «número» habitual de Marcelo cujo efeito de novidade acabará por atingir a sensação de «tudo quanto é demais, também enjoa».
Esta semana ele desmentiu-se a si mesmo, porque deixou em aberto a possibilidade de concorrer a um segundo mandato. Eu não esqueço que, em campanha eleitoral para as presidenciais de 2016, afiançara o contrário. Mas todos conhecemos a sua tendência para a volubilidade, quase tão intrínseca quanto a indissociável obsessão pelos cálculos políticos. Tal como Fischer se recusou a voltar a jogo em 1975, quando anteviu a provável derrota face a Karpov, também não me admiraria que essa venha a ser a opção de um esgotado Marcelo.
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