Prosseguindo a leitura do livro de Gonçalo M. Tavares sobre Marius, o clandestino que anda a ajudar uma menina autista a procurar o pai, cheguei à parte em que ele encontra Vitrius, um antiquário apostado em prosseguir a tarefa iniciada pelo avô e prosseguida pelo pai: ir anotando em cadernos a lista dos números pares.
Se há muitos anos o avô começara com 2, 4, 6, 8, etc., passados tantos anos Vitrius já alcançara a dimensão em que cada número já extravasa a largura de uma página.
Aquele que é considerado um dos melhores escritores portugueses da atualidade não se limita a criar histórias apelativas para o leitor: convida-o a repensar os fundamentos da nossa sociedade, quiçá a questioná-los na sua racionalidade.
Marius pensa que o esforço de Vitrius constitui um sinal de loucura, e o interlocutor adivinha-lhe o pensamento, mas ele reflete muito mais do que isso. Porque trata-se de metaforizar o desejo do Homem pela ordem, pela segurança e previsibilidade do que cria. E que melhor representação desse desejo do que os números alinhados, e desconhecidos, mas sempre dotados de uma lógica irrefutável?
Na construção milenar das nossas civilizações temos assumido o papel desse Vitrius: herdámos essa ordem como natural e prosseguimo-la sem a contestar. Pelo menos é essa a postura maioritária dos cidadãos, que tomam os contestatários, os que propõem alternativas, como gente de quem mais valerá desconfiar.
Não deixa de ser paradoxal que os gregos já nos tenham ensinado os sofismas como exaltante proposta de pensamento. Tudo questionar, nada dar como facto adquirido, tem sido, porém, a tentação de muito poucos. Que, porém, revelam vir a ser os fautores de cada pulo em diante, que a Humanidade tem dado.
É por isso que, chegados a este tempo, caracterizado pelo primado do mercado, da exploração da maioria por uma cada vez mais exígua minoria, vale sempre a pena considerar ser possível outra ordem das coisas. E não nos podemos sentir confortados por ver a atual ordem vir a morrer de morte natural, como espera o próprio Vitrius, cujo consolo implícito reside na forte probabilidade de, sendo velho e não tendo filhos, aquela lista acabar com ele. Todos os dias vale a pena pôr em causa os lugares comuns e os valores em que se baseiam as injustiças do presente.
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