“Uma Menina Está Perdida no Seu Século à Procura do Pai”, o romance de Gonçalo M. Tavares, que andamos a intercalar com outras leituras, continua a ser muito rico para abordar o lado menos visível da nossa realidade política e social, suscitando reflexões pertinentes.
Chegámos agora à parte em que Marius e Hanna, a menina do título, encontram um estranho homem, Josh, que os leva a casa para lhes dar a conhecer a sua estranha singularidade: ele é capaz de decifrar o conteúdo de expressões redigidas numa dimensão tão diminuta que, a olho nu, só permite vislumbrar um segmento de linha.
Marius tem uma enorme surpresa quando olha para a aparente linha inscrita numa folha de papel e o microscópio lhe faculta uma leitura mais fidedigna, permitindo-lhe ler uma frase consistente.
O que somos nós senão pobres mortais, que olhamos para o que se passa à nossa volta e a vemos plasmada numa linha de continuidade, que esconde muito maiores complexidades do que nos pareciam acessíveis à primeira vista?
O que está implícita na história criada por Gonçalo M. Tavares é a proposta de não nos deixarmos iludir pela superficialidade do que vemos. Vale a pena ir mais além, escalpelizar a capa exterior e discernir o que nos possa ela esconder. E pôr dúvidas, mesmo quando nos tentam convencer da incontestabilidade dos axiomas com que nos bombardeiam diariamente através de jornais, televisões, rádios ou redes sociais.
Peguemos num exemplo de hoje: os telejornais quase se parecem comprazer com as declarações de Dijsselbloem ou de Draghi, que surgem concertados em aplicar sanções a Portugal pelos resultados fracassados das políticas implementadas pelo governo anterior. E escolhem imagens de arquivo em que Centeno quase parece um Egas Moniz a quem só falta meterem-lhe uma corda ao pescoço.
Que linha nos querem impor essas imagens? Certamente a de que a subserviência às instituições europeias é coisa boa, enquanto se revelaria errada a determinação do atual governo em infletir tal atitude.
Querem que vejamos essa linha, mas nós teimamos no uso do microscópio e detetamos na realidade um conjunto de razões bastantes para porfiarmos na contestação. E esperando que a tal se não atrevam, já não excluo a possibilidade, acaso me engane e o Eurogrupo as imponha, de ser justificável uma enorme manifestação como a de 15 de setembro de 2012, com um único fito: depois de os ingleses terem eventualmente decidido nesse sentido, pode-se justificar que outros povos europeus os sigam na desafeição à União Europeia se ela apenas existir para punir os recalcitrantes com as suas políticas.
Terá, pois, de existir uma grande diferença entre a linha, que nos querem deixar ver, e a efetiva leitura, que ela esconde. Ou como diria um saboroso personagem de Mário de Carvalho, vai uma grande diferença entre Manuel Germano e género humano. E é em nome dessa humanidade, contrariando os apostados em nos circunscreverem aos tais números em folhas de excel, que a defesa dos nossos interesses poderá passar por algo mais do que os cultores das inevitabilidades nos querem fazer crer...
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