Em 1960, quando ainda mal acabara de fazer os 4 anos, os meus pais matricularam-me na escola das velhas da Torre, que eram três irmãs solteiras cujo sustento provinha do ensino das primeiras letras a sucessivas gerações de petizes nascidos na Caparica e arredores.
Naqueles bancos já tinham estado a minha avó, a minha mãe e tios e a minha irmã. Por lá andei a aturar-lhes a rabugices das já provectas idades até chegar a altura de ir para a escola oficial e deparar com uma professora tida como o terror dos meus amigos mais velhos: igualmente solteirona, mas ainda a entrar na idade madura, a Dona Odete era a diretora da escola masculina e pródiga no uso da reguada.
Conheci, pois, e bem demais, o que era a educação no seu sentido mais tradicional em que, à força da ameaça de castigos, os alunos eram obrigados a decorar as lições em vez de desafiados a chegarem por si mesmos ao conhecimento. Era assim, que se aprendiam os nomes dos rios e dos seus afluentes, das linhas de comboios com as suas estações, e outras informações de mais do que duvidosa utilidade para o nosso futuro.
Vem isto a propósito do tema da próxima edição de «Philosophie», que no domingo de manhã, porá Raphaël Enthoven a discutir com Anne Dalsuet a forma como Hanna Arendt pensava as questões da educação, tanto mais que essa interlocutora prefaciara a mais recente edição do livro «La crise de l’éducation” da autoria da filósofa alemã.
Se em meados dos anos 60, alguma esquerda europeia transformara Arendt num dos seus ídolos, apesar de a ter sabido amante do nazi Heidegger durante o período nazi e desculpabilizadora do criminoso Eichmann em quem vira a representação da banalidade do mal na figura do funcionário disposto a cumprir as ordens superiores sem lhes questionar a legitimidade, as suas teses sobre o antitotalitaríssimo estiveram momentaneamente na moda..
No ensaio agora publicado Arendt lamenta que os adultos tenham abolido a sua autoridade ao educarem as crianças por assim se estarem a demitir da responsabilidade de cumprirem devidamente essa função. Para ela fazia todo o sentido manter os métodos conservadores, porque só a partir deles se poderia iniciar a «aprendizagem da liberdade».
Ela distinguia a instrução, que seria a metodologia tradicional pela qual se ensinava a ler ou a praticar a álgebra, da educação, que implicaria a preparação da criança para se vir depois a integrar no mundo dos adultos.
Adivinha-se que Arendt não seria grande entusiasta dos métodos do professor John Keating, que todos recordamos do «Clube dos Poetas Mortos», porque ela não acreditava na função do ensino como o da aprendizagem da autonomia. Muito embora possamos relativizar o facto de Arendt não defender a metodologia tradicional apenas como reprodução automática das práticas passadas, porque aceitava a lenta evolução de se integrarem no ensino as pequenas evoluções, que as circunstâncias demonstrassem pertinentes.
Para a filósofa as estratégias liberais, que encontraria nos Estados Unidos, e em que se invocavam os benefícios de ajudar as crianças a descobrirem-se a si mesmas, continham o perigo de elas nunca se chegarem a encontrar e mimetizarem, sem questionamento, os primeiros modelos convincentes, que lhes aparecessem pela frente. É que existe uma constante em todos os tipos de educação dos mais tradicionais aos mais liberais: os alunos tendem sempre a imitar os seus professores.
Se Arendt não aceitaria de bom grado aquele que os seus alunos designavam como "O Captain! My Captain!" do poema de Walt Whitman, muito menos gostaria da versão dos Pink Floyd no seu tema «Another Brick in the Wall», onde o coro juvenil canta: «We don’t need no education!».
Arendt defendia que a autoridade não é a tirania e continua a fazer todo o seu sentido. Sê-lo-á, perguntamo-nos? Uma coisa é certa: à distância de mais de meio século eu não gostaria nada que a educação das crianças de hoje continuasse a ser afinada pelo diapasão da temível Dona Odete.
Sem comentários:
Enviar um comentário