«Os Infinitos» é o romance do John Banville, cuja leitura iniciámos, e onde encontramos uma família reunida em torno do patriarca, previsivelmente a viver os últimos momentos depois de fulminante AVC.
Ao fim de cinquenta páginas ainda é cedo para reconhecer mais do que uma escrita densa, descritiva, mas eficiente na elucidação do estado de alma da mulher e dos filhos de Adam, todos eles a cultivarem uma ambiguidade de emoções relativamente a um progenitor reconhecidamente egoísta e devasso.
Mas, estando em causa a temática da morte, vale a pena situarmo-nos num parágrafo da página 38 em que Banville escreve:
O segredo da sobrevivência é uma imaginação defeituosa. A incapacidade dos mortais para imaginar as coisas como elas realmente são é o que lhes permite viver, uma vez que um vislumbre momentâneo, incontido, da totalidade do sofrimento do mundo os aniquilaria imediatamente, como uma lufada da mais letal emanação de canos de esgoto. Nós temos estômagos mais fortes, pulmões mais resistentes, vemos tudo na sua fealdade total a cada instante e não nos intimidamos; é essa a diferença, é isso que faz de nós divinos.
Ficam-me dúvidas quanto a esta tão axiomática definição da nossa condição de divinos. Admito que para um intelectual burguês a viver no floreado reino da Rainha Isabel II aonde imperam tantos rituais absurdos, cumpridos com a maior das desenvolturas por gente que se deveria interrogar quanto à sua natureza e aparência, esse voltar costas à realidade constitua estratégia de fácil execução. Já para a maioria dos seus leitores nesta tão difamada Europa do Sul as circunstâncias diferem substancialmente. Porque, dia após dia, vão-se apertando as oportunidades de sobrevivência facultadas por sociedades a contas com os piores desígnios das pardas eminências capitalistas escondidas por trás dos tais omnipotentes mercados.
E então se ponderarmos no que sentirão os palestinianos de Gaza, uma vez mais, agredidos pela barbárie sionista, a possibilidade de serem divinos alheando-se da realidade é reduzida à mínima expressão…
A descoberta deste livro ainda mal começou mas, apesar de tantos encómios à qualidade da escrita de Banville, começa a justificar-se um distanciamento idiossincrático entre a nossa condição de latinos leitores e a do britânico autor daquelas palavras…
Já quanto à excelente série da mesma origem, «Downton Abbey» de Julian Fellowes, cuja terceira temporada está a passar num dos canais por cabo, a reação só pode ser oposta: o efeito de empatia é imediato, muito embora também estejam presentes, e de que maneira!, as mesmas diferenças culturais e sociais. Só que o retrato de uma velha família aristocrática inglesa é aqui caracterizado pela consciência de existir um mundo em acelerada mudança, a tornar obsoletos muitos dos valores, que prevaleceram durante séculos. E, quer nela, quer no mundo singular da criadagem respetiva, vão-se revelando valores éticos intemporais, que justificam algumas das estórias em que o argumento se vai enredando, mesmo à custa de algum empastelamento de umas quantas situações.
Conceitos como de lealdade, de tolerância e de integridade sobrepõem-se aos da intriga, da mentira, do preconceito, que daqueles constituem a outra face da moeda. E, numa altura, em que este capitalismo criminoso em que sobrevivemos nos quer dissociar dos valores mais importantes, que fundamentam a nossa humanidade, é sempre bom encontrar divertimentos inteligentes em que eles são devidamente enfatizados.
É esta qualidade das produções britânicas a nível das reconstituições históricas, que explica bem porque, às segundas-feiras, sempre que se transmite um novo episódio, o telespectador converte-se num guloso prodigamente saciado...
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