quinta-feira, 30 de março de 2017

Haverá razão para ter tanto medo de distopias?

As esquerdas atuais andam esquecidas dos acontecimentos históricos em que se afirmaram como protagonistas. E do pensamento dos seus inspiradores. Tolheram-se com o fracasso de sucessivas tentativas de passarem à prática o que tanto seduzia na teoria, pondo-a em questão como se fosse ela a responsável pelos crimes que as direitas tanto enfatizam terem sido cometidos em nome daquelas. Falta-lhes a veemência de recusarem qualquer semelhança entre Hitler e Estaline, ou entre Salazar e Cunhal - confusões gratas a quem impede o advento de sociedades mais justas, porque menos desiguais nos direitos e rendimentos. Uns pretendiam o usufruto das riquezas só para poucos, os outros, mesmo que incompetentes na forma de o conseguirem, sonhavam para todos uma distribuição justa de quanto se produziria. Pode haver alguma semelhança entre o carácter de uns e de outros?
Não podemos igualmente esquecer que, mesmo não se tendo, nem por sombras, assemelhado ao que deveria ser uma sociedade comunista, o bloco soviético serviu de dissuasor, décadas a fio, da aceleração das desigualdades. Foi pelo medo de verem os trabalhadores ocidentais ambicionarem o que julgavam ser a utopia do outro lado do muro de Berlim, que o patronato tolerou, na medida das suas conveniências, a ilusão social-democrata. Por isso mesmo, se quisermos estabelecer uma fronteira histórica para o momento em que os direitos e os rendimentos de quem trabalha começaram a sofrer sucessivos cortes ele é indubitavelmente o da queda do muro. Porque desmistificou de vez os falsos sucessos do que acontecia do lado de lá e trouxe milhões de desiludidos com as ideias progressistas para o campo dos alienados consumidores ocidentais.
Falta às esquerdas a assumpção de um discurso, que consista tão só nisto: não há futuro para uma sociedade em que um número reduzido de privilegiados usufrui de obscenas regalias enquanto aos demais está prometida a pobreza e a precariedade. E um outro mundo é possível de acordo com uma ética redistributiva e respeitadora dos limites impostos pela assustadora degradação do enorme ecossistema, que é a Terra.´
Se Marx previu que a evolução dos sistemas económicos e sociais acompanhariam os progressos tecnológicos - a célebre fórmula de Lenine para quem o comunismo resultaria do somatório do capitalismo com a eletricidade - a automação e a robótica, rapidamente a imporem-se no nosso quotidiano, propiciarão condições para grandes mudanças na sempiterna luta de classes.
Aceitarão milhões de pessoas sem acesso a emprego entregarem-se ao sacrifício como  cordeiros à degola? Na lógica de produzir, vender e ganhar mais-valias com mercadorias poderá o capitalismo sobreviver com a inevitável diminuição do número de consumidores? Ou será pela direita, que se cria a ilusória redistribuição da riqueza através do rendimento universal já em vias de ser ensaiado nalgumas sociedades nórdicas? E por quanto tempo se tolerarão os crimes ambientais das indústrias do petróleo e do gás natural tendo em conta os sucessivos «desastres naturais» potenciados pela sua atividade?
Nos séculos anteriores o tempo passava com outro ritmo. Agora tudo se acelera, se torna mais premente. Os cenários distópicos ou utópicos eram concebidos para futuros longínquos. O que deixou de assim ser: o amanhã é já hoje, e cabe às esquerdas conceptualizá-lo, concretizá-lo. E não precisa de inventar novas teorias, porque elas já estão mais do que estruturadas. Bastará tão-só adaptá-las às novas circunstâncias.
É isso que as várias esquerdas ainda não têm sabido fazer: uns prendem-se a ilusões de ser possível retroceder às condições específicas de espaço e tempo em que o seu ideário social-democrata foi possível (a ideia de mercados não voltará a ser a mesma desde que eles foram abocanhados pela lógica financeira dos especuladores!);  outros cristalizaram-se nas aplicações falhadas das teorias, que supostamente defendem, e para os quais olham com míope saudade.
As esquerdas deverão recuperar o orgulho de se afirmarem marxistas no que isso significa indignarmo-nos. Com especuladores a acautelarem em offshores o produto do esbulho conseguido pela sua rapacidade. Com a existência de gestores a receberem rendimentos equivalentes a dezenas, ou mesmo centenas de quem para eles trabalha. Com a negação da esperança de milhões de jovens, que não veem como emanciparem-se dos constrangimentos de não garantirem a curto, a médio, e muito menos, a longo prazo, a sua sobrevivência e a dos filhos, que gostariam de ter. Com a voracidade dos que destroem paraísos naturais porque nos seus solos adivinham os restos dos recursos naturais ainda não transformados em dióxido de carbono.
Nos dias que correm as esquerdas parecem atarantadas, incapazes de encontrarem a coerência e consistência, que as tornem incontornáveis na definição dos tempos vindouros. Mas a necessidade aguçará o engenho e elas encontrarão o seu caminho. Ou já o estão a encontrar aqui e acolá, onde emergem novos líderes e renovadas propostas de atualização dos seus valores éticos, republicanos. Como sucede entre nós, por muito que nos inquietem algumas das infantilidades dos que integram a atual maioria parlamentar. 

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