segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

No sistema do vale tudo


Pegue-se num filme como «O Fundador», que John Lee Hancock realizou em 2016, e podem-se adotar duas perspetivas ideológicas completamente opostas. Os mentores da nossa imprensa económica tenderão a vê-lo pelas lentes de alguns dos seus axiomas preferidos, mesmo que, nesse capítulo, a realidade os tenha tornado em teses mais do que controversas. Por exemplo, que um empreendedor persistirá no seu afã de alcançar a riqueza passando por múltiplos fracassos antes de descobrir a fórmula da pólvora. Que a América é grandiosa na capacidade para fomentar os sonhos e permitir realizá-los. Ou que, retomando a famosa frase de Gordon Gekko em «Wall Street» a “ganância é boa!”.
Oposta será a perspetiva de quem se posiciona na contestação ao atual sistema económico, baseado na exploração do homem pelo homem, e vê em Ray Kroc (Michael Keaton) um escroque. Porque, à partida, existe um conceito de restauração de inegável sucesso, criado pelos irmãos McDonald, que alia um equilíbrio insuperável entre preço e qualidade, com este último fator a revelar-se inquestionável. Ao convencer esses dois honestos patrões de restaurante a deixá-lo franchisar o modelo de negócio, Kroc não recuará perante nenhum escrúpulo:  começa por implorar a quem o financie e a quem lhe dê autorização para expandir o negócio, falsifica a receita dos batidos (usando leite em pó em vez do genuíno), fica com a mulher de um dos seus associados, e acaba por, despudoradamente, roubar a marca e o conceito aos seus dois inventores, que acabarão falidos.
Ray Kroc é o paradigma do homem sem qualidades, porque isento de padrões morais e de conhecimentos quanto àquilo que o enriquece - até mesmo a transformação estrutural do negócio, afinal pouco tendo a ver com a restauração, porque se converte num de cariz preponderantemente imobiliário,  lhe é dado pelo seu futuro diretor financeiro, que acaba por também dispensar, quando dele já não necessita! - mas se sabe movimentar habilmente nos meandros do sistema.
Se tivesse de dar aula sobre a forma como o capitalismo se expressa no dia-a-dia, a visão prévia deste filme serviria, e muito!, para lançar a futura discussão. Porque está lá quase tudo: o capitalismo como expressão do vale tudo como o próprio Kroc acaba por confessar a uma das suas infaustas vítimas: se visse um concorrente a afogar-se ainda trataria de pôr-lhe uma mangueira goelas abaixo, para o eliminar mais rapidamente. E esse ainda é o mundo em que nos movemos.

Sem comentários:

Enviar um comentário