Há um par de semanas tive de me deslocar a Lisboa por duas vezes para sítio onde arrumar o carro costuma ser tarefa ciclópica. Recorri assim ao comboio entre a estação dos Foros da Amora e Entrecampos constatando em ambas ocasiões o mesmo facto: quando dantes era comum ver parte significativa dos passageiros a lerem livros ou jornais, encontrei-os agora focalizados nos ecrãs dos telemóveis.
Associando a essa observação a de quão longínquo vão os tempos em que o proletariado sentia uma urgente vontade em se informar e ganhar novos conhecimentos - o notável trabalho das Universidades Populares ou da Voz do Operário - começa a intuírem-se as razões para a normalização de um discurso fascista no nosso quotidiano. Porque quem trabalha por conta de outrem foi manipulado para se perder em mil e uma distrações e perder a vontade de melhor se instruir para compreender o funcionamento deste mundo, que tende a frustrar-lhe o direito à felicidade. O regresso de ideologias criminosas, que comprovaram ser fonte de infelicidade para a grande maioria dos que as padeceram, só se explica pela crescente ignorância dos que delas se fazem porta-vozes.
Nesse sentido o capitalismo tem sido muito hábil a impedir os que explora de lhe abreviarem o merecido desiderato. Começou por lhes prometer uma sociedade de bem estar, pervertendo o verdadeiro significado da social-democracia (onde até passaram a caber partidos assumidamente de direita!). Iludiu-os com uma sociedade de consumo em que até o mais miserável poderia converter-se em bem sucedido acionista das sempre florescentes bolsas de valores.
Quando as crises do petróleo ou a falência dos bancos deram sinal de existir uma riqueza finita em que os mais abonados operam para abocanhar bolo sempre maior, criaram novos meios de alienação, quer sob a forma de centenas de canais televisivos impossíveis de a todos acompanhar, ou com a promoção do futebol à condição de uma espécie de circo romano eivado de paixões irracionais. O que poderia ser utilizado positivamente em prol do bem coletivo - o audiovisual como escola permanente ou o desporto como instrumento ao serviço da saúde e do bem estar individual - foi prostituído ao serviço do anseio dos donos disto tudo para assim se eternizarem.
Neste milénio essa mesma prostituição de ferramenta potencialmente benigna em maligna vem ocorrendo com a internet e as suas redes sociais. A possibilidade de uma maior rapidez na difusão de ideias progressistas e de se terem infinitas enciclopédias sempre à mão, foi substituída pela disseminação de fake news, de fofocas idiotas ou de ocos entretenimentos. O resultado é o da criação de conveniente desorientação dos imaginários coletivos. Mantem-se o desejo de encontrar a porta franqueadora da felicidade plena, mas o corredor tornou-se tão longo e as hipóteses de erro tão infinitas, que os confusos cidadãos acreditam nas mensagens mais sonoras, que os instam a abrir este ou aquele caminho. E, infelizmente, os tais donos disto tudo têm os recursos para fazerem sobressair as vozes dos que lhes servem de marionetas e sugerem soluções à medida da estratégia de as coisas continuarem a ser como são.
Mesmo quando algo parece transformar-se no sentido da História - e ele é o da maior justiça e igualdade, que o iluminismo setecentista canonizou! - tem havido a habilidade dos poderosos replicarem o intento do príncipe Salinas, favorecendo a aparência de algo mudar para que tudo fique na mesma.
O maior falhanço das esquerdas nas últimas décadas tem sido o de permitirem ao campo contrário o uso e abuso das ferramentas, que deveriam ser prioritariamente suas . Um audiovisual que forme e informe em vez de embrutecer, um universo cibernético dominado pelas suas discussões e propostas em prol de um mundo melhor. E, em complemento, um consumo mais regrado dos recursos não sustentáveis, acelerando o advento de uma sociedade que faça do decrescimento económico e populacional a matriz para um planeta perenemente azul.
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