Revisito as fotografias sobre a Operação Condor de João Pina, que estiveram expostas no Torreão Ocidental do Terreiro do Paço, entretanto publicadas em livro pela Tinta-da-china, e o imprescindível livro de Eric Nepomuceno chamado «A Memória de todos nós». Ambos dedicaram-se à abordagem da terrível tragédia que se abateu sobre os povos latino-americanos durante os anos de chumbo em que as ditaduras militares decidiram combater o comunismo à custa de uma sucessão ininterrupta de torturas e assassinatos. A coordenação de toda essa conspiração partiu da Escola das Américas, que a CIA organizou no Panamá, mas há que não esquecer os especialistas militares franceses e israelitas que, igualmente, andaram a ensinar como subjugar «subversivos».
Quando corporizo as imagens desse tempo de terror encontro duas possíveis nas vivências passadas: a ordem para a adoção de ritmo rápido e sem olhares curiosos para lá dos muros da Escola de Mecânicos da Armada, quando se queria alcançar o centro de Buenos Aires a partir do cais onde atracavam os navios de cruzeiros. Os cartazes eram elucidativos: uma atitude mais suspeita poderia ser punida com um tiro sem aviso prévio. E, no entanto Raul Alfonsin já estava a concluir o mandato enquanto primeiro presidente pos-ditadura, avizinhando-se a campanha eleitoral, que levaria Carlos Menem a suceder-lhe.
A recordação dessa experiência inclui o estremecimento interior por saber que dentro desses muros, tinham sido mortos tantos dos que as mães da Praça de março ainda procuravam resgatar do esquecimento exigindo punição exemplar para quem os assassinara.
Compensa, de alguma forma, saber que esse sinistro espaço militar foi, entretanto, convertido em Museu de Evocação das vítimas da ditadura, tendo sido inaugurado por quem nele nascera enquanto filho de uma das logo assassinadas após o parto.
A outra imagem é também do período de transição da ditadura para uma forma condicionada de Democracia. Aconteceu-me em Valparaíso, quando Pinochet já se vira derrotado no referendo, que julgara incapaz de o remover do poder e quando o presidente entretanto eleito, Patricio Aylwin, ainda não fora empossado. O meu cirandar pela zona ribeirinha da cidade - não me arrisquei aos barrios altos - foi acompanhado por sucessivas patrulhas militares que, a cada esquina, vigiavam os movimentos de todos quantos por ali circulavam. Embora a ditadura tivesse sido derrotada, a pressão dos seus agentes continuava a ser ostensiva.
Desde então, nalguns dos países abarcados pela Operação Condor, a justiça veio a repercutir-se nos assassinos e torturadores, mesmo que tarde e a más horas. No entanto, seja na Argentina ou no Chile, o nome dos chefes militares desses anos negros, está agora manchado, poucos havendo que insistam em os considerar heróis.
Não aconteceu o mesmo com o Brasil. Pelo contrário: a associação do capital, do sistema de Justiça e da imprensa (Rede Globo, revista Veja, Folha de S. Paulo, etc.) nunca permitiu que o reequacionamento dos crimes da ditadura entre 1964 e 1985 fosse feito. Pelo contrário é comum viajar-se pelo país e encontrar quartéis militares com o nome dos sucessivos ditadores, que se sucederam no poder nesse período. Assim se explica o golpe de Estado concretizado contra Dilma, a conspiração para inculpar e manter Lula na prisão, impedindo-o de recuperar a Presidência, e a promoção do tenebroso Bolsonaro enquanto herdeiro desse passado até agora livre da merecida condenação.
O que aí acontecerá nos próximos meses é imprevisível porque, entre um recauchutado regime militar e o regresso à ordem constitucional com um presidente livremente eleito - Lula -, não será fácil prever qual a que se revelará vitoriosa. De qualquer forma confirma-se a velha lição de Edmund Burke sobre a possibilidade de repetir os erros do passado, quando se esquecem as lições da História. Os políticos brasileiros que, nos últimos trinta anos, pactuaram com um manto de silêncio sobre o sucedido nas duas décadas anteriores, foram cúmplices ativos do atual desastre, e porventura da tragédia, que se seguirá.
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