segunda-feira, 24 de setembro de 2012

TEATRO: «O Senhor Ibrahim e as Flores do Corão» no Teatro Meridional



Temos tido tantos motivos para deprimirmos, que esta peça encantatória do Teatro Meridional constitui um bálsamo, facilmente classificável no muito restrito número das verdadeiras pérolas.
A uma semana de concluída a sua apresentação no espaço da companhia no Poço do Bispo constitui uma pena, que tanta gente, capaz de nela encontrar lenitivo para se ensaiar para as próximas lutas contra este estado de coisas, a deixe passar ao lado. É que ela deveria constituir peça de visão obrigatória para todos quantos anseiam por um mundo bem mais digno e humanizado...
A história, da autoria de Eric-Emmanuel Schmitt é singela: um miúdo judeu de onze anos decide partir o mealheiro aonde acumulou duzentos francos e vai às prostitutas da Rua do Paraíso. Mas a sua iniciação para a vida adulta não decorre afinal dessa primeira experiência sexual, porque, de caminho entra na loja do senhor Ibrahim e começa a entabular com ele um diálogo lento, em que, ao ritmo de uma frase por dia, vão aprendendo a conhecer-se entre si. Aproveitando Momo para lhe ir roubando latas de sardinha.
Mas nada escapa ao árabe, que afinal não o é, já que se apresenta de origem turca e na linha dos sábios sufistas para os quais o Corão é lido de forma quase completamente antagónica à dos fanáticos salafistas.
Numa entrevista Schmitt assumiu perfeitamente o carácter intencionalmente provocador de descrever uma história de amizade entre um árabe e um judeu, tanto mais pertinente quanto fanáticos de cada um dos lados se vão esforçando por adiar o mais possível uma solução sensata para o problema palestiniano.
É Ibrahim quem irá servir de pai de substituição a Momo, cujo verdadeiro progenitor jamais conseguirá superar as dores de ter perdido os pais ainda em criança - levados que foram pelos comboios para os fornos dos campos de concentração - nem de segurar uma efémera esposa por quem cedo fora trocado em proveito de companheiro mais interessante.
Na loja da sua rua o rapaz irá aprender os valores fundamentais, que dão substância à mais genuína essência da sua condição humana. Porque é do velho muçulmano que colhe ensinamentos do tipo: o que dás fica contigo para sempre, enquanto perderás inevitavelmente o que conservas.
Quando fica órfão, Momo torna-se oficialmente no filho adotivo de Ibrahim e com ele inicia uma longa viagem de carro até à sua Anatólia natal, encontrando pelo caminho múltiplos templos aonde os dervixes dançam à roda em jeito de oração.
O Corão transforma-se então num repositório de saber ancestral em que pouco importam as palavras nele contidas, já que mais importantes são as folhas secas depositadas entre as suas páginas. E o que elas transportam das épocas distantes em que havia tempo para as pessoas não se deixarem robotizar...
Momo não tardará a conhecer uma vez mais a experiência da morte, mas em condições completamente diferentes das conhecidas quando o seu verdadeiro pai se tinha enfiado debaixo das rodas de um comboio perto de Marselha. Ibrahim cuidara de o emancipar e de lhe legar a sua fortuna.
Será essa a razão porque o encontramos homem adulto e pacificado nos seus medos e ansiedades, porque dotado de um conhecimento profundo da vida. Afinal feita de valores muito simples, mas profundamente vinculados à capacidade para suscitar aproximações em vez de afastamentos…
Em hora e meia Miguel Seabra e Rui Rebelo demonstram a futilidade dos grandes meios, quando com tão escassos, conseguem contagiar a sala quase esgotada com tão estimulante mensagem...

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