O salão da casa de Miss Whittemore
está soberbamente decorado, num exagero de cores e brilhos. O lustre de teto
que ilumina o espaço tem dimensão suficiente para albergar uma pequena família
e deita uma luz suave e amarelada, como um doente a morrer num hospital. Há
cortinas e panos pendurados, de várias cores e tecidos. As mesas estão cheias
de comida de todo o tipo, doces empilhados a querer chegar ao teto, cabritos e
borregos assados, sopa dourada, vinhos, e toda a espécie de doçaria conventual.
Na mesa junto à janela virada para Poente, ensaia-se uma Ultima Ceia: a companhia de teatro arranjou
doze apóstolos e um Cristo. Têm a mesa mais austera, para não atrapalhar a
estética do momento.
Do outro lado do salão,
uma banda filarmónica de metais toca músicas levantinas, mesmo junto à mesa
onde se senta Miss Whittemore com o sábio hindu e o feiticeiro.
Antónia está
maravilhada com o salão e com as decorações. Borja explica-lhe, aos gritos, que irá ser apresentada uma encenação da Ultima Ceia, que o
banquete é a coisa mais importante da religião, foi o próprio Jesus Cristo que
o disse ao mandar repetir o ritual e tornar o ato de nos sentarmos à mesa no
maior sacramento da Santa Madre Igreja. A religião deve fazer-se à volta da mesa. Ao comer enquanto se conversa, dá-se carne às palavras e elas ganham corpo. A comida entra-nos no estômago ensopada em
histórias. Há um casamento das palavras com a
salada, das histórias com o bife, das conversas com o vinho. Antónia não o
ouve, os olhos andam perdidos pelos panos tecidos por viúvas iranianas, pela
pedraria do lustre, pelo enorme crucifixo de madeira que está pendurado no
salão, como um anjo a voar. Rosa sorri, pois sente a felicidade da avó.
O professor agarra as
mãos de algumas pessoas e obriga-as
a dançar em roda, cruzando as pernas, com a variante fugaz de
se dirigirem ao centro e levantarem as mãos. Vai buscar Antónia e empurra a
cadeira para o meio do salão, e todos começam a girar à volta dela. A velha
ri-se como há muito não fazia e Rosa também se sente feliz. De repente, a meio
de uma dança, Borja caminha para a mesa onde se desenrola a Ultima Ceia e manda
retirar o vinho, pois é um erro histórico. O Cristo está impávido, mas São João
acha que não faz sentido e afasta o seu copo do alcance do professor, que
começa a discursar:
- Ninguém sabe, caros
Jesus Cristo e seus apóstolos, por que razão o homem se sedentarizou, já que
está provado que ser nómada dá muito menos trabalho. Então porque sucedeu essa
mudança radical? Muito simples, vou explicar-vos, queridos apóstolos e Nosso Senhor: foi a cerveja. Para ter
cerveja era preciso cultivar. E assim nasceu a sociedade como
a conhecemos. Graças à cerveja, temos hospitais e bibliotecas. Não existiriam livros
se não fosse a cerveja. Não existiriam escritores nem ciência. Os nómadas não
têm prisões nem conhecem o castigo, mas por outro lado não têm bibliotecas. Os
nómadas não têm nada disto, porque andam de um lado para o outro e as prisões
não podem ser transportadas, tal como as tipografias e os hospitais e as
livrarias. E tudo isso se deve ao facto de alguns povos terem querido beber
cerveja e, para isso, precisarem de se sedentarizar. No tempo de Cristo, no
vosso tempo, andavam todos a beber cerveja. Na verdade, as bebidas alcoólicas confundiam-se entre si, pois era normal juntar frutos a bebidas de cereais e cereais a bebidas
de frutos. Mas o que é certo é que o Egipto tinha inúmeras cervejeiras e
exportava grandes quantidades para a Palestina. O que se bebia no espaço
geográfico em que Cristo habitava era cerveja. O vinho era uma bebida de
romanos, dos invasores. Cristo não iria beber a bebida dos ricos, dos
opressores, como a inglesa que nos governa, mas a dos pobres, das putas e dos
pecadores. Isso é que era a cerveja, um símbolo do povo. Jesus Cristo bebia
cerveja, que sempre foi chamada de pão líquido, pois é verdadeiramente pão com
água. E a mesma levedura a transformar o cereal. Fouqueret dizia que a cerveja
deveria substituir a hóstia, pois é um pão vivo, que borbulha, não é essa coisa
insípida e espalmada e sem fermento que os padres espetam na boca dos fiéis. Em verdade, em
verdade vos digo que se o grão não cair na terra e morrer, não dará fruto. A cerveja é a ressurreição dos grãos, a sua
nova vida. É preciso morrer para isso, é assim que se inicia a fabricação da
cerveja. O grão apodrece e transforma-se
em malte, que depois se torna álcool, que os antigos chamavam
espírito. Deviam acabar com essas porcarias achatadas e dar às pessoas algum motivo
de alegria. Deus não esconde a sua inexistência nessas coisas por levedar.
O caseiro Rato, vestido
de padre ortodoxo, manda calar Borja: - Calem-no! - e sobe para cima de uma cadeira e tira
o dente que traz sempre consigo. É o dente que ele partiu ao professor Borja,
quando eram miúdos. O professor corre para ele, mas agarram-no no preciso instante em que chega o padre Teves, de braços abertos como um
crucificado. Manda parar a música e sobe para cima de uma mesa. Parece
possesso. Tem de acabar com a farsa, que não se brinca com coisas daquelas.
Grita para que Antónia o ouça, diz que aquilo não é Jerusalém, que ela foi
enganada e que ele não pode permitir isso.
Rosa corre para perto
da avó, que dorme profundamente, de boca aberta e queixo encostado ao peito,
mesmo no meio do salão. O padre tenta aproximar-se, mas barram-lhe a passagem. Miss
Whittemore expulsa-o e ameaça chamar a polícia.
- Não é preciso - diz o
padre. - Que Deus vos castigue pelas mentiras monstruosas que criaram.
- Platão também não gostava
de ficção, padre - diz o professor. - É a única coisa em que eu não concordo
com ele.
A partir desse momento,
a calma instala-se, a
banda recomeça a tocar, o barulho dos talheres sobrepõe-se ao das vozes e a Ultima Ceia continua como tinha começado: com cabrito e vinho tinto.
Já no final da noite,
cheio de vinho tinto, o professor grita, antes de cair completamente bêbedo:
Jesus bebia cerveja!
Mas nem aquele grito,
dado mesmo ao lado de Antónia, a acorda. Nem sequer os membros da ordem macedónia
a correr todos nus pelo salão a gritar poesias de Stamboliski.
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