terça-feira, 18 de setembro de 2012

LITERATURA: Uma entrevista a Mia Couto


A entrevista a Mia Couto já tem quase três semanas, mas só agora a li na «Visão» de então: conduzida por Sílvia Souto Cunha ela descreve o escritor como um «refazedor de mundos: territórios perdidos, universos paralelos, metáforas geográficas carregadas de política, magia e humanidade
Concordo em absoluto com a descrição: o maior fascínio, que me suscita a leitura dos romances do escritor moçambicano tem a ver com essa transferência momentânea para um universo completamente diferente em que a lógica racional vai dando lugar a uma mitologia e a uma sedimentação mágica dos seres, que se liga, de forma diferente, mas ao mesmo tempo com conexões admissíveis, ao realismo mágico sul-americano.
Ora, para um apreciador da prosa de Gabriel Garcia Marquez, reencontrar o mesmo encantamento numa ficção africana, só pode suscitar empatia imediata.
Mas essa predisposição não se fica apenas pela escrita: a personalidade de Mia Couto também incita à sua admiração.
Numa altura em que vou adiando o enfado - mera obrigação pessoal! - de espreitar a entrevista a Lobo Antunes ao programa «Square» do canal franco-alemão Arte no domingo passado, constitui um contraponto total a modéstia de Mia com a presunção insuportável do autor português. Aonde um se julga um génio, mostra-se aquele um simples aprendiz de feiticeiro.
Voltando àquela entrevista vale a pena parar em tr~es dos seus momentos a começar pela frase: «Transportamos o nosso lugar de origem para todo o sítio, irremediavelmente.»
E posso afiançar que sim. Totalmente: viajante pelas quatro partidas do mundo, não houve sítio, desde o Ártico a Ushuaia, da Barreira do Coral australiana à foz do rio Congo, que não tenha estado lá o lugar donde vinha a acompanhar a pessoa movida pela mais aberta curiosidade ao que dele tanto diferia.
Mais adiante, Mia aborda um dos temas essenciais da sua prosa: «Ter família é condição essencial para ser feliz. Mas ter demasiadamente uma família é algo de que temos de nos libertar. Tem que haver um laço que se corta, mas que nos deixa estar na rede familiar, protetora… É uma raiz que tem que se casar com uma asa, fazer-nos voar».
Esse estar e não estar com o elo de origem é uma questão nem sempre bem resolvida, quando a família pode ser também, mais do que o espaço do afeto, o do conflito, o da rejeição. Mas é algo incontornável de que nunca nos conseguimos apartar por muito que dela distemos em tempo e em espaço. Nesse sentido, é como esse mesmo lugar de origem, que transportamos, inevitavelmente connosco!
E, a concluir:
«A ideia de que a crise é apocalítica, crise de valores globais, é um sentimento europeu. A Europa não gere bem isto: como deixou de ser o centro do mundo, o mundo deixou de existir. Há uma reaprendizagem que nos fará bem a todos.»
Uma frase, que não consigo aceitar facilmente, pelo menos com a displicência do escritor africano: é que quem diz Europa, diz Declaração Universal dos Direitos do Homem e todo um conjunto de valores a que a perda do eurocentrismo não está a dar tanta relevância. Pelo contrário: numa altura em que a globalização, que está a recentrar o mundo na Ásia, assenta no capitalismo predador, tenho sérias dúvidas em concordar com Mia Couto quanto à bondade de nos poder vir a fazer bem essa reaprendizagem para que se diz tão disponível.

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