domingo, 16 de dezembro de 2018

(DL) Dulce Maria Cardoso e a necessidade de nos dessalazarisarmos


No Jornal de Letras desta quinzena o tema de capa foi a publicação de «Eliete», o mais recente romance de Dulce Maria Cardoso, podendo nele ler-se uma entrevista por ela concedida a Luís Ricardo Duarte e uma encomiástica crítica de Miguel Real. Logo de início este escreve que, “do ponto de vista da ficção em Portugal, não conhecemos outro romance que tenha explorado e analisado tão perfeitamente a situação atual da família, isto é, com uma tão grande soma de pormenores  do quotidiano, aparentemente irrelevantes, que, porém, acumulados e estruturalmente nem organizados, constituem o estilo realista da escritora.”
O enredo gira em torno da protagonista, cujo nome decorre de ter podido ser o outro escolhido pelos pais da autora para lhe darem identidade, e que vê a vida virada do avesso, quando a avó se vê acometida da doença de Alzheimer. Ora fora essa senhora muito religiosa, quem induzira na neta os seus padrões morais muito rígidos. Que ela se sente agora tentada a pôr em causa, insatisfeita na relação conjugal com Jorge, e com as filhas próximas da emancipação definitiva.  De súbito as suas diferenças comportamentais em relação à melhor amiga de infância, Milena, deixam de fazer sentido, dispondo-se a olhar interessadamente  para outros amores e expetativas de futuro.
Num romance em que as realidades tecnológicas, mormente as possibilidades abertas pelas novas redes sociais, multiplicam as oportunidades de se descobrir o que antes era insuspeitável, a própria Eliete vai surpreender-se quando Oliveira Salazar vai revelar-se-lhe numa faceta inesperada, que não só a do ditador, que, décadas a fio, impossibilitara o desejo natural à felicidade dos que oprimira.
Na referida entrevista a escritora faz incómodo mea culpa: “como é um romance sobre a identidade , também a minha, com muito desgosto tive de reconhecer que sou herdeira de Salazar. Ou seja, carrego uma série de pensamentos salazaristas, porque, ao longo de quase cinquenta anos, ele deixou a resignação, o conformismo, a pouca capacidade cívica, o medo. Teve certamente um papel no nosso modo de vida e é estranho que não seja reconhecido.”
O romance tem, logo à partida, essa virtude: a de nos ajudar a identificar o que o salazarismo inculcou em nós, por muito que o execrássemos, e dele nos quiséssemos livrar. A necessidade de expulsarmos de nós a marca dessa ditadura continua a ser um trabalho de todos os dias.

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