Teria o meu pai uns vinte cinco anos quando, acabado de casar, concluiu não garantir melhor vida à mulher e aos filhos, se não cuidasse de carregar no botão do elevador social e alcançar patamar superior.
Na época a rádio ainda era novidade só acessível aos abonados e da televisão nem quase se ouvia falar. Mas ele decidiu investir o que sobrava do modesto salário de torneiro mecânico num curso por correspondência enviado do outro lado do Atlântico e que o habilitaria a tornar-se técnico de ambos os meios de comunicação.
Entre tal decisão e o momento da exclusiva dedicação a essa atividade ainda passou uma década em que continuou a apanhar o barco matinal no Porto Brandão para se deslocar até à oficina de Alcântara onde punha o engenho a funcionar e nele criava as peças prontas a cumprirem a missão para que engenheiros as haviam congeminado.
Quando nasci a meio da década de cinquenta já ele ia compondo o ordenado à conta das reparações de eletrodomésticos em que ia ganhando renome na aldeia e noutras em redor. Depois, na altura em que Salazar mandara avançar para Angola e em força, entrava numa das mais conhecidas empresas dedicadas às reparações das cada vez mais disseminadas televisões, ali se conservando até à reforma.
Foram anos de muitos quilómetros percorridos por todo o distrito de Setúbal a repor a operacionalidade nos televisores, que os agentes iam recolhendo nas lojas à espera da sua passagem semanal.
Foi graças à epifania - cujas circunstâncias nunca indaguei -, que de operário se converteu num daqueles exemplos de representante da classe remediada, nome por que então se designava a classe média. E conseguiu dar estudos universitários aos filhos assim fadados para se integrarem no segundo quadrante do percentil de rendimentos tal qual foram definidos no livro sobre a pobreza em Portugal agora publicado por José Teixeira Lopes, Francisco Louçã e Lígia Ferro.
A realidade, segundo os autores, é que se tornou quase impossível, a quem está nos quadrantes mais baixos, apanhar o tal ascensor social tão facilmente assumido pelo meu progenitor, mesmo que à custa de muito estudo e determinação. Os tempos mudaram e quem nasce pobre dificilmente conseguirá que os filhos saiam dessa condição. E, mesmo as classes médias, veem os rebentos condenados a essa maldição à conta dos empregos que quase nunca deixam de ser precários ou mal pagos por mais mestrados ou doutoramentos que se lhes acumulem nos preenchidos currículos.
A História deu sobejos exemplos de grandes convulsões provocadas pela cristalização das classes sociais e, sobretudo, pela concentração da riqueza nas mais privilegiadas. Ora o estudo dos três autores de “As classes Populares – A produção e a Reprodução da Desigualdade em Portugal” confirma que o primeiro quadrante - o que corresponde ao percentil dos mais ricos - tem visto crescer os rendimentos, enquanto os outros três se vão aproximando, diluindo mais e mais as diferenças entre os pobres e os antigamente tidos por remediados. O que faz prever mudanças civilizacionais iminentes por muito que os ambientes ainda se nos apresentem bonançosos. Acaba por ser a confirmação da expressão «É a economia, estúpido», mas virada contra quem a afirmava como determinante para a execução de políticas contra os mais desfavorecidos. Marx não previa outra coisa … com o resultado consequente!
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