Não sendo exatamente a mesma coisa, a atribuição de medalha a Sá Carneiro em dia de comemoração da Revolução faz tanto sentido - ou falta dele! - como a de distinção similar ao foragido fiscal do Pingo Doce. Marcelo continua igual a si mesmo: aparentemente inócuo relativamente às esquerdas só engana os ingénuos quanto às suas verdadeiras intenções: a paciente espera das circunstâncias para as devolver à oposição de um poder mais do seu agrado. O mesmo tipo de aguardamento, que só o levou a candidatar-se a Belém, quando, por falta de comparência de Guterres, sabia invencível o seu passo à frente.
A diferença entre Marcelo e Passos Coelho é a deste último não conseguir disfarçar o nervosismo por não ver o Diabo tão perto quanto desejaria, enquanto o primeiro continua a usufruir as mordomias da função, a cultivar a falsa bonomia de ser uma espécie de mãe protetora, enquanto, pela calada, vai escondendo o rancor de se saber irrelevante para os interesses de que é marioneta.
O que teve Sá Carneiro a ver com a Revolução de Abril? Os mais ingénuos dirão ter sido importante a participação na bancada dos deputados da «ala liberal» do regime fascista, que procuraram dar-lhe o arejamento prometido por Caetano e afinal depressa esgotado na ilusão da «Primavera Marcelista».
Se recordarmos esses tempos houve deputados bastante mais intervenientes e corajosos, como Pinto Leite ou Miller Guerra, pois Sá Carneiro já então habituara os pares a refugiar-se no estrangeiro, quando sentia a situação mais aquecida. Algo que repetiria depois, quando a contestação interna dentro do PPD não lhe corria de feição e tinha Snu Abecassis para lhe afagar as mágoas.
Não podemos esquecer que, no pos-25 de abril, e até à sua morte, Sá Carneiro foi um político contrariado com tudo quanto a Revolução significara: nacionalizações, reforma agrária, legislação laboral progressista, etc.
No rescaldo do 25 de novembro não terá sido um dos que se chegasse à frente para impedir a proibição do Partido Comunista pretendida pelos seus apoiantes mais broncos. Nessa altura, não tivesse sido o papel destacado de Melo Antunes e uma boa parte dos portugueses ficaria sem representação parlamentar, condenados à clandestinidade.
Depois, quando conseguiu apossar-se do poder com a maioria absoluta da Aliança Democrática, o projeto passou por querer infletir quase tudo quanto a Revolução significara. Compreende-se, pois, que gerasse reações emotivas muito fortes em quem nele via um tiranete porventura mais sofisticado do que o padrinho do atual presidente.
Sem hipocrisia, recordo a alegria com que recebi a notícia da sua morte, quando andava embarcado no petroleiro «Neiva». Logo a entendi merecedora de ser devidamente comemorada. O acidente de Camarate - quem ainda acredita na falácia de atentado? - foi daqueles acasos, que refreou, por uns anos, o intento das direitas em «normalizar» a realidade portuguesa. Em pleno Índico, e apesar do luto sentido do Comandante (por sinal boa pessoa esse Mesquita, que um ataque cardíaco abreviaria a vida poucos anos depois!), colaborei na organização de ruidosa festa a celebrar o interregno da iminente contrarrevolução.
Condecorar Sá Carneiro a 25 de abril constitui, pois, um insulto ao que a data representa para a maioria dos portugueses. Porque o homenageado ganhou com o facto de a História se lhe abreviar nesse 4 de dezembro de 1980. Acaso tivesse sobrevivido, e mesmo falhando a vitória de Soares Carneiro na eleição presidencial, teria agudizado de tal forma o clima social nos anos seguintes, que faria sobressair a evidente inadaptabilidade às práticas democráticas. Por muito que haja quem afiance na possibilidade de Snu em lhe moderar os ímpetos.
É verdade que o programa gizado pelo bétinho da Foz do Porto viria a ser manhosamente cumprido pelo filho do gasolineiro de Boliqueime, mas, na época deste, a CEE ainda impunha aparências de respeito pelas liberdades fundamentais, que não se traduziriam no seu imediato cerceamento.
Que importava, então? Os jornais e as televisões já se caracterizavam pela subserviência à vontade de quem mandava e a redução progressiva dos direitos de quem trabalhava ia-se fazendo de mansinho sem danos de maior para quem ia mudando pouco na expetativa de ir conseguindo alcançar muito mais. Ao mesmo tempo acentuavam-se as desigualdades entre o primeiro percentil de rendimentos e os outros três, progressivamente apequenados na distribuição da riqueza nacional.
Neste 25 de abril, e apesar de distante do nosso retângulo, parece-me que a notícia maior foi a absurda consagração de um homem pequeno que, tanto quanto se sabe, nunca foi grande bailarino! E a reiterada confirmação da verdadeira natureza de quem mora no Palácio de Belém.
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