No dia em que passam cinco anos sobre a morte de José Saramago vale a pena regressar ao texto «Verdade e Ilusão democrática», publicado no «Expresso» de sábado transato e por ele lido numa conferência ocorrida em Sevilha em 1991 no quadro do quinto centenário dos Descobrimentos.
Trata-se de uma longa reflexão sobre a Democracia, que ele já via seriamente posta perigada, e cuja atualidade ainda mais pertinente se mostra quase um quarto de século entretanto decorrido, porque a deriva neoliberal das economias globais só tem agravado os sintomas então enunciados pelo escritor.
Quase no final ele considera que “o sistema de organização social que até aqui temos designado como democrático tornou-se cada vez mais numa plutocracia (governo dos ricos) e cada vez menos uma democracia (governo do povo).”
A ilusão da participação dos povos nas decisões coletivas é por ele denunciada como irrealizável: “É impossível negar que a massa oceânica dos pobres deste mundo, sendo geralmente chamados a eleger, não é nunca chamada a governar (os pobres nunca votariam num partido de pobres porque um partido de pobres não teria nada para prometer-lhes). É impossível negar que, na mais do que problemática hipótese de que os pobres formassem governo e governassem politicamente em maioria (…) ainda assim não disporiam dos meios para alterar a organização do universo plutocrático que os cobre, vigia e não raramente afoga. É impossível não nos apercebermos de que a chamada democracia ocidental entrou em um processo de transformação retrógrada que é totalmente incapaz de parar e inverter, e cujo resultado tudo faz prever que seja a sua própria negação”.
Se ainda fosse vivo não tenho qualquer dúvida sobre qual a posição política, que Saramago tomaria a respeito do atual braço de forças entre o governo grego e os seus credores. E veria nele um momento determinante sobre o que irá concluir: a probabilidade de ser a própria Democracia a estar em causa.
“Num mundo que se habituou a discutir tudo, uma só coisa não se discute, precisamente a democracia. Melífluo e monacal, como era seu estilo retórico, Salazar, o ditador que governou o meu país durante mais de quarenta anos, pontificava: ‘Não discutimos Deus, não discutimos a Pátria, não discutimos a Família’. Hoje discutimos Deus, discutimos a pátria, e só não discutimos a família, porque ela própria se está a discutir a si mesma. Mas não discutimos a democracia. Pois eu digo: discutamo-la, meus senhores, discutamo-la a todas as horas, discutamo-la em todos os foros, porque, se não o fizermos a tempo, se não descobrirmos a maneira de a reinventar, sim, de a re-inventar, não será só a democracia que se perderá, também se perderá a esperança de ver um dia respeitados neste infeliz planeta os direitos humanos.
E esse seria o grande fracasso da nossa época, o sinal de traição que marcaria para todo o sempre o rosto da humanidade que agora somos.”
É por isso mesmo que importa acompanhar com atenção o que se passará hoje no Eurogrupo e nas negociações em curso entre o governo grego e quem o anda a querer derrubar. Porque se uma eventual derrota do Syriza poderá significar uma batalha perdida, a sua improvável vitória equivalerá ao anúncio de uma guerra definitivamente bem sucedida para devolver o poder do povo, ou seja para a Democracia.
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