Uma das mais impressivas reminiscências dos meus dias em Xangai foi a de, num domingo, ter ido visitar o lindíssimo Jardim Yu (ou da Felicidade) e, à saída, ouvir um ruidoso banzé numa das ruas próximas. Acorri a ver do que se tratava e deparei com um daqueles desfiles coloridos em que vários figurantes vão no interior do assustador dragão, deles se vendo apenas as pernas, que servem para o ir deslocando atrás e à frente da orquestra, partida em duas, para melhor distribuir os sons dos instrumentos de percussão. De forma inesperada a China antiga, de matriz taoista, vinha-se acrescentar à que acabara de visitar no amplo complexo, outrora sede da Companhia das Pequenas Espadas que, a meio do século XIX, governara a cidade.
Quando o desfile se dispersou concluí quão contrastada era a realidade de uma tão grande nação, ora feita dos edifícios ultramodernos na interminável Nanjing Lu, ou na outra margem do rio visto do Bund, com o edifício da televisão a servir-lhe de incontornável referência, ora mantendo vivas as resilientes e imemoriais tradições por nenhum regime eliminadas.
Essa evocação aprofunda-me o entendimento do susto por que passam os defensores do capitalismo neoliberal ao estilo norte-americano ao constatar a rapidez com que ele se aprestará a ser ultrapassado pelo rival asiático. E, porque, apesar de desprezados por quem manda na Casa Branca, secundam-lhe as tropelias para dificultar essa anunciada supremacia. Nessa convergência entre o que foi e quanto se apresta a ser, a China possui em si a consistência de quem alcançará o objetivo sem haver quem lho possa obstar. Quem foi capaz de construir a maior edificação alguma vez produzida pela civilização humana - Grande Muralha - ou se antecipou em vários séculos às grandes obras hidráulicas do ocidente, com o seu imenso canal entre Pequim e Hangzhou, possui o engenho e a persistência bastantes para avançar decididamente passo a passo. Nós, europeus, deveríamos ser inteligentes perante a transformação em curso, escusando-nos a servir de muleta ao império, que entrou em irremediável declínio, deixando-o a lamber as suas feridas e a assumirmo-nos como parceiro numa gestão global em que o win-win faz todo o sentido.
O que a União Europeia anda a fazer relativamente à China, e já agora à Rússia, é das mais irracionais estratégias, que se podem apreciar de entre as muitas a que Bruxelas nos tem habituado. Porque o seguidismo em relação a Washington, só beneficia quem desmerece, sendo mais inteligente o esforço da sua consolidação como entidade económica e politicamente autónoma, capaz de negociar em plano de igualdade com todos, sem privilegiar nenhum deles. Seria, para tal, necessário que se começasse por extinguir a anacrónica NATO, substituindo-a por organização exclusivamente europeia e apostada na distensão em vez de prosseguir no fluxo de provocações, que aquela tem multiplicado nas fronteiras com a Rússia. Seria essa, quase por certo, a forma mais eficaz de retirar às extremas-direitas os apoios de que têm usufruído do leste europeu pela razão óbvia de Putin já delas não necessitar para que lhe sirvam de peões ideais para contra-atacar quem se tem esforçado por lhe fazer a vida negra...
Sem comentários:
Enviar um comentário