segunda-feira, 23 de abril de 2018

Recordar maio de 68 (4): as vitórias e as derrotas aparentes


Aquando dos acontecimentos do maio de 68, quem os testemunhou e decidiu participar num ou noutro sentido, tinha duas escolhas possíveis: ou aceitar uma solução parlamentar ou excluir-se dela, ficando condenado, mais tarde ou mais cedo, ao anunciado fracasso. As formações de extrema-esquerda cujos aderentes tinham, em grande parte, menos de 21 anos, não hesitaram em tomar a segunda opção lançando a palavra de ordem «eleições traição».
A Sorbonne foi evacuada à força e os sindicatos reorientaram as greves para uma saída negocial. A 23 de junho a maioria de direita, que estava periclitante desde as eleições de 1967, consolidou o domínio político aumentando a sua força parlamentar para 358 deputados em 485 possíveis. Mas essa vitória implicou votar leis capazes de satisfazerem algumas das aspirações do movimento, entre as quais a criação de secções sindicais  de empresa e a lei de orientação do ensino superior.
Tratava-se, pois, de uma vitória de Pirro para De Gaulle, que viu acentuadas as contradições internas na sua maioria. O referendo organizado em abril de 1969, para lançar as reformas  preconizadas  em 24 de maio, saldou-se por um resultado negativo como fruto da convergência conjuntural, mas eficaz, entre a direita modernizadora e os atores do movimento de maio. Essa derrota obrigou o general De Gaulle a renunciar fechando a cortina sobre a corrente política, que representava. Com algum  atraso também o PCF viu-se atingido por ricochete abrindo-se condições para redefinições políticas de enorme impacto no futuro. O regime sobreviveu à crise mas transformou-se. A Guerra e a Resistência perderam o efeito de legitimidade reconhecido até então, enquanto a modernização contribuiu para a afirmação de um novo sistema de valores, que também alteraram o sentido do movimento.
O maio 68 não pode reduzir-se ao curto lapso de tempo em que significou uma crise aguda ou a sua derrota imediata. As aspirações autogestionárias  emanciparam-se na contracultura, que ganhou significativo fôlego após o desaparecimento do esquerdismo político em 1972, e se exprimiu em novos tipos de jornalismo e de movimentos sociais, divididos em correntes feministas, regionalistas, ecologistas, pacifistas, homossexuais, etc. Tornaram-se uma referência mobilizadora e identitária para certos movimentos sindicais e de contestação como o lançado pelos operários da fábrica Lip.
A liberalização cultural ficou demonstrada com a lei sobre empreendedorismo de Valéry Giscard d’Estaing, com o reconhecimento da maioridade aos 18 anos, a transformação do estatuto da televisão pública, o divórcio e a interrupção voluntária da gravidez, que foram sendo sucessivamente aprovadas até 1975.
Que a vitória do liberalismo politico e social tenham sido quase contemporâneas contribuiu para que se confundissem as referências e filiações. O novo ciclo liberal encontrou terreno fértil no que correra mal em 1968 para encetar um conjunto de procedimentos de enquadramentos e de regulação, que haviam caracterizado os Trinta Anos Gloriosos. Novas formas de articulação entre o indivíduo e o coletivo tenderam para o apagamento do papel do Estado, valorizando a rejeição das regras em proveito da liberdade de cada um, impondo de facto uma galopante desregulação.
Essa posteridade complexa explica o progressivo distanciamento do Maio de 68 pela maioria dos que nele haviam sido atores principais. A sua rara evocação pelos movimentos sociais posteriores  e as críticas dos historiadores justificam esse desalinhamento. Nomeadamente os de gente como Luc Ferry e Alain Renaut doravante tornados compagnons de route da direita e execrando os gurus do campo oposto como o eram Michel Foucault ou Gilles Deleuze.



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