quarta-feira, 4 de julho de 2018

Ainda temos muito do reino cadaveroso, que tanto nos subdesenvolveu


A história é conhecida, mas vale sempre a pena recordá-la para ter presente o quão perniciosa foi a ação de Oliveira Salazar no nosso passado recente. E o uso da palavra indiciadora dessa influência ainda próxima faz todo o sentido, porque continua a existir gente apostada em ver qualidades na sua governação, quando ela só se caracterizou pelos mais indesculpáveis defeitos.
Acontece que, no início dos anos 50 do século transato, um conjunto de gente endinheirada convenceu o ditador, com assinalável custo, em como Lisboa carecia urgentemente de um hotel de quatro estrelas, capaz de receber com a devida dignidade os mais ilustres visitantes do país. Essa necessidade já se fizera sentir durante a Guerra, quando muitos exilados da aristocracia e do grande capital haviam por aqui passado na escala para além-Atlântico e só se revelava mais premente numa década de acelerada afirmação cosmopolita.
Era isso mesmo que Salazar temia: a influência dos usos e costumes vindos de fora punha em causa a durabilidade de um regime assente na contenção das populações às raízes rurais e à subjugação aos ditames da Igreja Católica. Se não conseguira travar o impulso desenvolvimentista de Duarte Pacheco, cuja morte precoce terá constituído para ele um alívio, tudo continuava a fazer para que a modernidade não tivesse portas abertas para se exprimir de norte a sul do país. Por isso mesmo execrava Pardal Monteiro, arquiteto subserviente do Estado Novo para o qual elaborara algumas das obras mais representativas, mas muito menos filiado ideologicamente nos seus princípios do que o já envelhecido Raul Lino. O facto de os comanditários da obra do novo hotel terem escolhido o primeiro para conceber o projeto mereceu o seu reiterado desagrado. E. tão teimoso na cegueira quanto depois se revelaria o seu putativo seguidor Cavaco Silva, Salazar nunca visitou o hotel, apesar de instado a fazê-lo sucessivamente antes da inauguração em 1959.
Nesse sentido Salazar revelou maior fanatismo, que o seu amigo Cerejeira, cuja recetividade à obra concebida pelo mesmo arquiteto para a Igreja de Nossa Senhora de Fátima na Avenida de Berna, confrontou a ruidosa contestação dos mais truculentos reacionários. Na altura o Cardeal de Lisboa enfrentou os mais raivosos indignados do seu rebanho, aludindo à necessidade da adaptabilidade da Igreja Católica aos clamores dos tempos novos. Acontece, porém, que o erudito prelado depressa esqueceria essa lição de humildade perante a inovação e sempre secundaria o seu amigo de Santa Comba a manter-se inalterável nas suas muitas certezas e nenhumas dúvidas até à sua morte.
Mas a nossa História é fértil em demonstrações da coligação nociva entre a Igreja e os políticos mais conservadores, constituindo esse um motivo maior para que Portugal se tenha quase sempre atrasado em relação ao que outros povos iam evoluindo. Se o esforço das viagens marítimas quinhentistas muito deveu ao saber e ao financiamento dos judeus, a sua perseguição pela Inquisição instituída por D. João III constituiu um tal desastre, que o país perderia, inclusivamente, a sua independência. Mesmo depois, quando a recuperou, a sanha contra os hereges e os cristãos-novos manteve tal ímpeto, que o país viu-se privado de alguns dos mais lúcidos e talentosos dos seus sábios, como foi exemplo Ribeiro Sanches, proibido de viver em Portugal pelas suas origens judaicas, mas aproveitado pela Imperatriz Catarina da Rússia para ser médico da corte de São Petersburgo e seu médico pessoal.
Reino cadaveroso seria a expressão utilizada por Sanches para crismar um país demasiado subordinado aos axiomas do clero católico. Nos seus escritos crepusculares ele aventaria a necessidade de derrubar os conventos e erradicar da Universidade os defensores da Escolástica. Infelizmente, mais de dois séculos passados sobre a sua morte continua a ser urgente a higienização da sociedade portuguesa, tornando-a efetivamente laica e livrando-a, tanto quanto possível, dos políticos, que mantêm do salazarismo os tiques (Passos Coelho tinha-os e Rui Rio também deles não se livra!), ou, pior ainda, a ideologia (caso óbvio de Assunção Cristas).
No fundo precisamos de encontrar atalhos para o futuro, que nos livrem de quem nos quer manter presos aos estigmas do passado.

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