Há uns dias o presidente chinês depreciou o modelo de democracia ocidental sob o argumento - reconheçamos que pertinente! - de não acolher as virtudes meritocráticas, pois se as tivesse nunca possibilitaria, que um Trump viesse a ser presidente dos Estados Unidos.
Uma das constatações que vou fazendo nas interações com muitos amigos com que converso de política é a persistência de um conjunto de ideias feitas, tidas como axiomas inquestionáveis na sua veracidade, e que impossibilitam uma análise mais rigorosa dos acontecimentos atuais.
Tomemos por referência a forma como se olha para a Rússia, onde Putin acaba de ser reeleito como seu líder máximo para os próximos seis anos com mais de 75% dos votos. Faz sentido que nos deixemos obnubilar pela visão dita atlantista, tão cara a toda a direita e a uma parte significativa de altos dirigentes socialistas? Tardará muito a reconhecer-se que, tendo mantido a Nato depois da Rússia se ter visto privada do pacto de Varsóvia, é no mínimo compreensível o apoio de uma larga fatia do eleitorado ao perfil autocrata de Putin apenas porque ele lhe dá a garantia de uma resposta firme e poderosa contra o permanente acosso de que se sente alvo? Quando se levam ao pelourinho os principais dirigentes europeus dos anos 90 por terem desperdiçado a oportunidade de construírem a tal Europa do Atlântico aos Urais de que chegara a falar De Gaulle e que só os preconceitos oriundos da Guerra Fria inviabilizaram?
Se a Europa vive uma das piores crises de identidade das últimas décadas muito deve à visão atlantista, que levou os políticos a preferirem sujeitar-se aos ditames de Washington do que em ajudarem a Rússia a libertar-se da paranoica forma de encarar as relações internacionais. As consequências são devastadoras, porque Putin explora eficientemente os piores demónios ocidentais - particularmente os dos extremismos xenófobos - para dividir quem se deveria melhor entrosar não enjeitando o recurso ao terrorismo informático para fortalecer esses movimentos, que se constituem em seus agentes dedicados nos países em que promovem o euroceticismo.
Os russos sentem-se confortados por se dotarem de um líder completamente oposto ao tolo que abriu com a perestroika uma caixa de pandora de que saíram tantos monstros capazes de transformarem a vida de milhões de russos num inferno, ou do bêbedo que lhe sucedeu e cuja desfaçatez boçal tantos embaraços suscitou. Os indicadores, desde o da esperança de vida ao do rendimento médio, têm melhorado significativamente nos últimos anos e assim prometem continuar, mesmo depois das prováveis conspirações para enfraquecer a Rússia e a Venezuela mediante uma redução drástica do preço do barril do petróleo no mercado internacional.
Ao invés de Putin, a União Europeia conta com um pequeno napoleão com mais prosápia do que talento para revigorar a enfraquecida França ou uma envelhecida e, crescentemente tida como obsoleta, líder alemã. Na ponta ocidental há quem tenha uma visão ambiciosa e consistente de quais os melhores trilhos a seguir, mas se há quem repute de brilhante o discurso de António Costa em Estrasburgo, ainda há quem no Velho Continente olhe para Portugal e para os portugueses com a arrogância de quem acha que o tamanho (do país ou da sua economia) efetivamente conta...
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