sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Crise? Que crise?

Em 2012 a revista «Spectator», - que tantos orgasmos virtuais garante a muito direitista da nossa praça e teve como chefe de redação entre 1999 e 2008 o grande «herói» do Brexit, Boris Johnson! - anunciava em parangonas que nunca na História da Humanidade se havia conhecido tanta prosperidade e tanta paz.
Nem os cenários distópicos dos miseráveis que vão morrer à beira do Ganges ou as malfeitorias das diversas seitas fundamentalistas de inspiração islâmica conseguiam demover os autores de tal diagnóstico que, com números, demonstravam um recuo nas vítimas da subnutrição a nível mundial, um aumento exponencial na produção de alimentos e uma redução das vítimas de conflitos armados.
Quase líamos em tal diatribe o entusiasmo de Pangloss, o personagem voltariano que, mesmo durante o terramoto de Lisboa, achava que vivia no melhor dos mundos possíveis.
Nessa mesma linha de pensamento Matt Ridley publicou um ensaio intitulado «O Otimista Racional» em que verberava a atitude comum de temer pelo futuro: “por muito que  as coisas melhorem em relação ao que estavam anteriormente, as pessoas ainda se agarram à ideia de que o futuro não será outra coisa que não um desastre.”
Imbuído da sua curiosidade quanto à possibilidade de nos estarmos a aproximar de um devir utópico, o filósofo esloveno Slavoj Žižek  aceitou o convite para dar aulas em Seul de forma a observar in loco o extraordinário desenvolvimento da economia e da sociedade sul-coreana.
Confirmou, de facto, esse desempenho económico de topo capaz de garantir ás população um consumo frenético. Mas, em contraponto, viu-a comprometida com ritmos de trabalho insanos e com sérios problemas de solidão, se não mesmo de desespero. Razão para a inquietante taxa de suicídios aí constatada.
Žižek  pôde assim conjeturar que, depois de ter constituído inspiração para ver o seu modelo económico e social replicado noutras latitudes, a Europa perdeu esse atrativo e está a ser substituída por uma Ásia capitalista onde se secundariza a importância dos valores democráticos.
Aqueles que eram tidos como os conservadores do passado reciclaram-se nos defensores de um tipo de capitalismo mais eficiente ao qual complementam com condimentos destinados a criarem a ilusão de uma coesão social. Nesses condimentos ganham particular relevância as confissões religiosas ou formas incongruentes de nacionalismo.
Perante a aparente Utopia, que tinha um tão óbvio reverso distópico, Žižek  concluiu que as pessoas não se revoltam quando as coisas estão mesmo mal, mas quando veem frustradas as suas expetativas. Os egípcios que encheram a Praça Tarhir o Cairo para derrubarem Mubarak ou os brasileiros que os imitaram em 2014 em protestos contra os custos com a Copa e com os Jogos Olímpicos, viviam bem melhor do que uma década atrás. Muitos deles, se não mesmo a maioria, até tinham vivido ou ansiado por uma ascensão social, que anteriormente não tinham acreditado como possível. Terá sido paradoxal que, protestando por quererem ainda mais e mais depressa,  tenham perdido muito do que haviam ganho…
Hoje é mais do que evidente a correlação entre o progresso e as instabilidades e antagonismos decorrentes de expectativas insatisfeitas.
A cavalo dessa insatisfação os mais lunáticos defensores do mercado livre procuram convencer quem os ouve de que a crise de 2008 nada teve a ver com a desregulamentação anterior, mas com o facto dela não ter sido tão ampla quanto pretendiam. Continuando a apostar numa «verdadeira» economia de mercado, sem os atilhos do Estado-Providência, defendem uma tal «pureza» do capitalismo, que são resolutamente cegos à contínua dança dos opostos.
Se hoje as esquerdas têm de aprender alguma coisa com as últimas décadas é a necessidade de se dissociarem dos que Marx apressadamente classificou de lumpemproletariado, por, não tendo trabalho, ficarem à parte do movimento dos explorados contra ao roubo das mais-valias pelo capital.
Tendo em conta a precariedade dos empregos e a dimensão social atingida pelos que anseiam por respostas para a sua sobrevivência, todas as movimentações políticas à esquerda têm de ser inclusivas não só dos que são explorados por trabalharem, quer dos que também o são por o não conseguirem fazer. E sobretudo há que libertarmo-nos dos habilidosos discursos das direitas em que tanta importância assume o que dizem, como o que intencionalmente deixam por dizer.
Voltando aos artigos  do «Spectator» estamos muito distantes de viver no melhor dos mundos possíveis, mas também não adotamos a “conveniente” depressão que nos deixaria suficientemente abúlicos para engolirmos todas as pastilhas austeritárias, que nos queiram servir. Se nos mantemos otimistas não é por termos chegado até aqui, mas pelo que será possível cumprir para chegarmos a um Além mais próspero e igualitário ainda no prazo de validade das nossas vidas.

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