Até por não pertencer ao universo dos crentes de qualquer religião tenho-me privado de comentar o que quer que seja com os sinais oriundos do Vaticano desde que o Papa Francisco substituiu Bento XVI.
Comecei intimamente por desconfiar dele tendo em conta a colaboração da igreja argentina com as juntas militares, que ali semearam o terror nos idos anos 80 - e foram contraditórios os testemunhos sobre as suas atitudes nessa época! - mas sou forçado a reconhecer que vou-me inclinando cada vez mais para uma posição de simpatia para com as provas por ele dadas ao longo do seu Pontificado. E o sucedido nesta última semana em Espanha vai nesse mesmo sentido.
Recordemos então, que o governo de Zapatero havia criado legislação sobre o aborto em linha com os padrões europeus mais avançados, cumprindo o pressuposto da total separação entre os preconceitos religiosos e os Estados. Ora, desde o início da tomada de posse do governo Rajoy, que a Igreja espanhola andou a pressionar no sentido da revogação dessa legislação, recuando-a para o carácter punitivo do aborto prevalecente na época franquista. E para tal muito contribuía o ministro da Justiça Gallardon.
Nas últimas semanas, e porque Rajoy titubeava perante as sondagens comprovativas da enorme desaprovação do eleitorado espanhol a essa revisão da Lei, o cardeal Antonio Rouco organizou enormes manifestações, que inundaram as ruas de Madrid de fundamentalistas do seu conceito preconceituoso sobre o assunto.
Foi, pois com surpresa, que, sem explicações, o Vaticano ordenou a imediata passagem á reforma do seu máximo representante em Espanha e a sua substituição pelo bem mais tolerante bispo Carlos Osoro. O Papa dava assim um sinal eloquente sobre a sua condenação a um excessivo proselitismo dos católicos para com os que não são, desaprovando assim a imposição ilegítima dos seus valores aos que não os professam.
Francisco já percebeu aquilo que tarda a ser entendido por muitos dos seus bispos: que a única possibilidade de sobrevivência da Igreja Católica nos nossos dias será o seu decidido regresso aos conceitos sugeridos pelo Vaticano II em que cabe à instituição o papel ecuménico de conciliar todos os credos e raças e assumir o notável papel por ela exercido nas áreas sociais de apoio aos mais pobres e oprimidos.
Numa altura em que o maior génio científico dos nossos dias - Stephen Hawking - reafirma que a Ciência não encontra qualquer prova da existência de Deus, conceito com o qual é incompatível, as religiões tendem a não ter boa imprensa nos próximos anos não só por causa dos crimes jihadistas das organizações terroristas islâmicas, mas também pelo crescente aumento de tensões entre os fundamentalistas hindus da Índia para com os demais credos ali professados, e agora acolitados num governo, que lhes serve de suporte moral.
Mas não é apenas perante as formas mais extremadas de fanatismo religioso, que o Vaticano tem de revelar uma estratégia inteligente, já que conta igualmente com a concorrência dos muitos cultos evangélicos, que se aproveitam da impossibilidade de, até aqui, a Igreja Católica ainda não ter dado passos decisivos relativamente ao papel das mulheres no seu seio ou à não menos candente questão do matrimónio dos seus padres.
Pode-se, pois, dizer que o Papa Francisco, ao mesmo tempo que anda a cuidar da sobrevivência da sua instituição milenar, também constitui por ora o compagnon de route para uns quantos valores particularmente acarinhados pela Esquerda do nosso tempo. E só por isso já merece ser olhado com uma atenção que o anticomunismo primário de João Paulo II ou o intelectualismo inquisitorial de Bento XVI não justificavam…
Que tudo isto se tivesse saldado pela demissão do ministro Gallardon e o abandono da revisão da Lei espanhola sobre o aborto só justifica esta crescente simpatia por tal personalidade!
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