Durante a Segunda Guerra Mundial a cidade de Leninegrado foi sujeita a um cerco de 900 dias, imposto pelos exércitos alemães. Nesse período todas as linhas de abastecimento de mantimentos à cidade ficaram interrompidas. E, para agravar essa realidade, os depósitos onde se acumulavam alimentos suficientes para um ano, foram bombardeados logo nos primeiros dias desse ataque, pouco se aproveitando dos destroços então resultantes.
Quando, já em vias de serem derrotados, os alemães retiraram da região, a cidade perdera um milhão dos seus habitantes. É que os rigores invernais traduziram-se em temperaturas abaixo dos –30ºC e as epidemias suscitadas pelos cadáveres insepultos eram uma realidade quotidiana.
Desde então, silenciados anos a fio pelo poder soviético, quase todos guardaram para si as provações sofridas, nada coincidentes com o mito heroico fabricado pela propaganda. Daí que a realizadora holandesa Jessica Gorter tenha aproveitado as comemorações do 65º aniversário da libertação da cidade - ocorridas em 2010 - para procurar alguns dos sobreviventes e recolher-lhes os testemunhos possíveis.
Surgiu assim o documentário «900 dias, o cerco de Leninegrado», que começa logo por ter a curiosidade de apresentar alguns desses «heróis» como orgulhosos de o serem, enquanto outros se distanciam dessa condição distanciando-se da pompa dessa cerimónia como se se tratasse de uma palhaçada.
Na rodagem do projeto justificava-se a procura das respostas para algumas questões: que espaço fica para as vítimas, quando a lenda heroica dos seus sofrimentos está tão instituída? Até que ponto o testemunho dos que viveram o cerco de Leninegrado poderia ameaçar a propaganda soviética?
Ao atribuir medalhas aos sobreviventes desse cerco de 29 meses, o regime estalinista tê-los-á dissuadido de exprimirem publicamente o inferno em que tinham (sobre)vivido, feito de fome, frio e desespero. Mas, muitos dos entrevistados ainda revela uma inquestionável admiração por Estaline, cujo retrato transportam com orgulho nos desfiles pelas margens do rio Neva. O que não os impede de discutir se os altos comandos soviéticos teriam sido apanhados de surpresa pela rapidez do ataque alemão, ou se o sabiam inevitável e nada poderiam fazer.
À medida que os relatos se vão sucedendo vêm á tona os atos quase inconfessáveis a que a necessidade obrigou os sitiados: a decapitação do gato doméstico ou os casos extremos - mas não tão raros quanto se possa pensar! - de canibalismo.
Impressiona, por exemplo, o relato da mãe que confecionou uma sopa com o cadáver de uma das filhas para alimentar a irmã, naquilo que uma anciã classifica como um ato de amor, rejeitando a condenação clerical de tal caso. Mas também a quase certeza do tipo de carne, que integrava as almondegas que se iam conseguindo arranjar…
Confirmando isso mesmo existem relatórios policiais de indivíduos presos e condenados por profanação de cadáveres ou mesmo assassinatos para se aprovisionarem em carne.
O regime deu a Leninegrado o nome de «Cidade Heróica», mas a maior parte da população ficou com distrofia, uma doença resultante da falta de comida. Por isso mesmo a mortalidade desses sobreviventes no pós-guerra continuou elevada como consequência das sequelas contraídas nesse período.
Também, já em 1948, começou a falar-se da tentação das autoridades soviéticas da cidade em renderem-se aos alemães, o que só não terá acontecido por falta de oportunidade. O que significou uns quantos fuzilamentos e condenações para gulags no período final do consulado de Estaline.
A força desse e doutros testemunhos bastam para valorizar este documentário, que peca pela construção aproximativa, mas mostrando uma história que ainda está bem presente no imaginário de muitos russos.
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