Sara Daniel é uma das mais conceituadas jornalistas francesas, autora de reportagens de referência nos mais diversos cenários de crise. No número do L’Obs» desta semana ela publicou uma reportagem sobre a escravatura a que as crianças sírias estão sujeitas na Turquia, esse país que dirigentes europeus acharam aceitável como parceiro na resolução do problema dos refugiados, mas responsável pela criação de toda uma geração de crianças analfabetas, condenadas a lumpenproletarizar-se para toda a vida e, principalmente a garantirem aos patrões a redução drástica do custo do trabalho por todo o país.
O que o regime criptofascista de Erdogan está a conseguir, com o beneplácito das democracias ocidentais é fazer-se potencial candidato à integração europeia - já não bastou a perversão aos ideais de Monnet ou Delors com a intromissão dos ex-países comunistas, quase todos defensores do que de pior subsiste como ideologia defensora da “mão invisível”! - mas também agudizar a exploração dos mais pobres pelos mais ricos.
Mas o que viu a filha do admirável Jean Daniel nas suas deambulações pela Turquia?
Em Kilis, aldeia situada a apenas 50 quilómetros de Alepo, conheceu Mohamed, um miúdo de 11 anos, que partiu a bacia ao cair das escadas da padaria onde trabalhava das seis horas da manhã às oito da noite mediante o pagamento de 30 euros mensais. Ora, ele e irmão gémeo são os únicos a auferir de um salário com que vivem oito membros da família ali refugiados.
Foi a primeira etapa de uma viagem destinada a confirmar que, aproveitando o afluxo dos refugiados, a Turquia dá preferencialmente trabalho às crianças porque são mais baratas, submissas e exigem ainda menos direitos do que os adultos. E, no caso das raparigas, a realidade ainda é mais cruel, porque muitas são negociadas para casamentos definitivos ou temporários (o eufemismo para a prostituição) tão só chegam aos 8 anos.
Recentemente insígnias como a Next ou a H&M reconheceram vender produtos oriundos de fábricas turcas, onde trabalham crianças sírias. Nomeadamente utilizando máquinas-ferramentas sem proteções, que frequentemente lhes lesionam braços e pernas.
Na zona industrial de Antakya, Sara conheceu Houdaï, que pinta móveis à pistola, durante doze horas por dia, nos sete dias da semana. Aos doze anos está a morrer lentamente devido a um emprego, que lhe danifica os pulmões e o faz vomitar ao fim de cada dia. Na Síria esse miúdo de 12 anos era reconhecido na escola como tendo particular talento para a matemática. Agora sabe que nunca mais voltará a estudar.
Antes da «Primavera» enaltecida por uma corja de intelectuais franceses - com o sinistro Bernard Henri-Levy à cabeça - que mais não serviu do que de pretexto para a expansão jiadista por toda a região, a Síria de Bashar al Assad apresentava uma taxa de escolarização infantil de 99% para a escola primária e de 89% para a secundária, quer para rapazes, quer para raparigas, não havendo distinção entre ambos. Atualmente, das 700 mil crianças sírias refugiadas na Turquia apenas 1/4 permanece precariamente escolarizada.
Voltando a Houdaï, Sara conheceu-lhe a mãe, Asma, licenciada em economia pela faculdade de Alepo, que sobrevive graças ao trabalho dos três filhos, todos empregados na mesma fábrica, e cujo marido a abandonou, voltando para a Síria onde se terá casado de novo.
No andar por cima onde reside essa família, também vive Abdou, um miúdo de 11 anos, que trabalha numa tinturaria e recorda com saudade os tempos de escola onde sonhava vir a ser professor.
Depois de passar por Hacipasa, feudo do contrabandismo na fronteira sírio-turca por onde transitava o petróleo do Daesh, Sara Daniel conclui a sua viagem em Adana em cujas quintas são produzidos muitos dos produtos agrícolas consumidos nos mercados europeus.
No passado eram os curdos ou os anatólios que engrossavam os grandes exércitos de trabalhadores nómadas, que se deslocavam ao sabor das colheitas. Agora foram substituídos por uma nova classe de proletários agrícolas que cobram 7 euros pela jornada diária (menos ainda no caso das crianças!) em vez dos 20 anteriormente remunerados a quem os antecedeu e que, por isso mesmo, os detestam.
No acampamento Sara soube que as epidemias são crónicas e para as quais não há quaisquer medicamentos.
Chegados ao fim deste confronto com a realidade sórdida hoje vivida na Turquia - não esqueçamos que o sítio para onde estão a ser reenviados os refugiados que a Europa não quer nas suas fronteiras! - só podemos sentir maior repugnância pelos que continuam a falar de Assad como sendo um tenebroso ditador, quando já estão desmascarados os biltres, que o pretendiam substituir, nem que para tal tenham causado tanto sofrimento em grande parte da sua população.
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