Houve comentadores das nossas televisões que realçaram o comportamento dos assassinos dos redatores do «Charlie Hebdo» como denotando um treino militar.
Não faltaram conjeturas sobre a forma como eles se deslocaram e a frieza com que, nas imagens transmitidas, dispararam à queima-roupa contra um polícia já prostrado no pavimento.
De repente parecia confirmar-se o cenário de terror alimentado nos últimos meses em como, regressados da Síria e do Iraque depois da previsível derrota do autodenominado Exército Islâmico, centenas de terroristas incendiariam todo o ocidente com atentados preparados e executados graças às competências ali aprendidas.
Os canais franceses, bem menos «coloridos» no modo como tratam deste tipo de assuntos, tendem a relativizar esse iminente apocalipse. Porque o suposto treino dos irmãos Kouachi não careceu de qualquer especialização em campos islamistas, bastando o facultado na prática do paint ball.
E isso é tão verdade, que se corrobora numa memória pessoal recente: há uns anos participámos num passeio ao ar livre que se iniciou junto à estação fluvial da Trafaria, subiu à Raposeira e percorreu toda a arriba fóssil até à Costa da Caparica, passando pelos canhões antigamente dedicados à proteção de toda a zona costeira entre o Cabo Espichel e o Bugio.
Íamos em grupo umas vinte pessoas quando, precisamente nessas antigas instalações militares hoje em ruínas, demos com um numeroso grupo de praticantes de uma atividade «lúdica» do tipo daquelas em que se inscreve o «paint ball». Uniformizados com camuflados e armados com espingardas «brincavam» às guerras, ficando notoriamente agastados pela interrupção, a que os obrigávamos.
Passando tão rapidamente quanto possível pela zona sem com eles interagirmos, não deixámos, já quando os tínhamos pelas costas, de ser visados com uma pedra que, se tivesse acertado em qualquer de nós, causaria decerto danos físicos consideráveis.
De repente tínhamos dado com uns energúmenos como só sabíamos existirem através de algumas reportagens jornalísticas, que tendem a dar-lhes estatuto de normalidade. Porque quem se diverte em jogos de guerra não é propriamente um menino de coro. Não é difícil imaginar que os sociopatas neonazis encontrem neles uma forma de ocuparem o tempo a seu gosto, sonhando com atos gloriosos num futuro mais ou menos indefinido, onde a caça ao «preto», ao «monhé» ou ao «comunista» se torne prática aceitável.
Porque a diferença entre os neonazis e os fanáticos islamistas é nenhuma - ambos correspondem às vertentes mais abjetas de como o fascismo persiste nos nossos dias - é muito natural que tais atividades sejam bem mais perigosas do que alguns as querem considerar.
Muito embora surjam notícias contraditórias sobre uma eventual deslocação dos Kouachi à Síria para se treinarem para o atentado desta quarta-feira, bastava eles integrarem-se num grupo de gente «divertida» como a encontrada nas falésias sobre as praias da Cova do Vapor para ganharem a «habilidade» e a «frieza» com que mataram Charb, Wolinski, Cabu e os outros nove assassinados na sede do «Charlie Hebdo».
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