Há quem tenha militado na extrema-esquerda na juventude e nunca se conseguiu libertar dos esquemas de pensamento de então, mesmo quando adotou as posições da direita.
Um bom exemplo disso é a procuradora maria josé morgado que, recentemente, nos brindou com uma pérola de cultura do seu pensamento ao prometer a redenção utópica da sociedade portuguesa depois de limpa de quem considera «corruptos».
Se a juntarmos a paulo morais, que andou a entusiasmar muita gente de esquerda à conta da sua campanha pró-transparência depois de andar a ocupar cargos políticos em nome do CDS, temos de concluir a existência de uma perversa e singular cumplicidade ideológica entre os extremos, que às vezes se alargam como sucedeu quando à esquerda e à direita do Partido Socialista várias forças se conjugaram para derrubar o governo de José Sócrates.
Vem isto a propósito de um outro ex-esquerdista, Olivier Roy, que militou na Gauche Proletarienne , quando andava no liceu, mas soube vencer os espartilhos leninistas do pensamento de então para se converter num dos maus argutos especialistas na análise do islamismo radical.
Com ele ocorreu exatamente o contrário do sucedido aos ex-maoístas rendidos aos encantos do capitalismo selvagem: serviu-se da própria experiência para melhor interpretar os fenómenos políticos de hoje.
Por isso, passados ainda tão poucos dias sobre os crimes dos irmãos Kouachi e do seu cúmplice em Paris vale a pena determo-nos no pensamento do filósofo francês. Para ele os jihadistas de hoje encarnam o mesmo tipo de sectarismo dos esquerdistas dos anos 70 numa versão de uma violência bastante mais extremada.
“Os jihadistas pensam que só lhes resta o combate. São como os leninistas, que criticavam os sociais-democratas por não conseguirem derrubar o capitalismo e diziam: é preciso passar para a fase revolucionária.”
Os jihadistas recusam o enquadramento do Estado-nação porque o veem como uma armadilha para o islamismo e só julgam possível a imposição das suas ideias através de uma ação de âmbito global.
Mas para vermos como Olivier Roy conseguiu sair dos estereótipos analíticos, metamorfoseados em equívocos como o do choque entre civilizações, vale a pena recuar no tempo e compreender o percurso, que o trouxe até aqui. Para tal pegamos no recém-publicado livro «En Quête de l’Orient Perdu» no qual é longamente entrevistado por Jean-Louis Schlegel.
Em junho de 1969 a prova escrita de admissão à École Normale Supérieure não lhe terá corrido bem e decidiu partir à boleia até ao Afeganistão para conhecer localmente o Oriente exótico, que tanto o fascina. Já está em Cabul, quando fica a saber da sua passagem à oral e exequível aprovação, mas opta por não retroceder e porfiar no plano que o levara até ali.
Aprende a língua, atravessa o país a cavalo e de mota e interessa-se pelas relações singulares entre os muçulmanos e a política.
Nos anos 80 torna-se amigo do comandante Massoud, que comanda os moudjahidines contra o exército soviético. A experiência permite-lhe compreender que a guerra vira do avesso os equilíbrios sociais e as hierarquias entre gerações. Não admira que o KGB venha a considerar que, para se conhecer verdadeiramente esse país que a URSS considerava de interesse estratégico, seria fundamental conhecer os relatos por ele feitos na sequência de sucessivas viagens.
Em 1992 publica um livro em que prevê o fracasso do islamismo como regime político: a criação de um estado verdadeiramente islâmico é uma impossibilidade porque os interesses de quem detém o poder acabarão sempre por se sobrepor ao dogma.
A análise da região, depois de viagens por outros países da região (Irão, Tadjiquistão, Uzbequistão), leva-o a constatar o epílogo da reconfiguração do Médio Oriente estabelecida pelos poderes coloniais na sequência da queda do Império Otomano em 1920. Bastaram oitenta anos para os equilíbrios precários, então estabelecidos, serem virados do avesso quanto às fronteiras, às zonas de influência e às lideranças.
Tratando-se de uma transformação geopolítica ainda em curso, Roy aconselha prudência quanto a conotar-se com uma cultura específica os comportamentos dos atuais protagonistas fundamentalistas. É que ela vai sendo sucessivamente contornada de acordo com as circunstâncias de cada momento. No fundo o que entendemos como cultura islâmica resume-se a algumas normas de etiqueta e de educação.
Podem-se verificar a esse título as grandes diferenças entre a Al-Qaeda e o Daech.
Para preparar os seus atentados Bin Laden precisava de santuários e de aliados: os talibãs afegãos e paquistaneses e pequenos grupos no Iémen e na Somália. Nunca lhe passou pela cabeça territorializar a Al-Qaeda, mediante a submissão de uma população local, ou derrubar a monarquia saudita. O objetivo era atacar Nova Iorque.
O Daech segue o caminho oposto: apossa-se de um território e de uma população com que entra forçosamente em guerra.
Os países ocidentais não parecem ter visto esta realidade: fizeram do Daech um perigo ainda maior do que a Al-Qaeda porque parecia estar prestes a conquistar um vastíssimo santuário. Mas, pelo contrário, ao territorializar-se manifestava apenas a capacidade de se converter num ator regional.
Continuando a ver a região pelo filtro do tal choque de civilizações, o Ocidente sentiu-se ameaçado pelo Islão e não percebeu quanto são minoritários os ultrarradicais no contexto global do mundo muçulmano. E como o seu súbito êxito se assemelha a um fogo fátuo.
Significa isto, que a minimização dos riscos por eles representados implicaria deixá-los à solta a matarem e a violarem mulheres à tripa forra?
Claro que não! A guerra aérea dos EUA e seus aliados, a par do apoio aos peshmergas curdos são essenciais para apressar o estertor destes alucinados. Tal como a utilização de drones nas regiões fronteiriças entre o Afeganistão e o Paquistão, ainda que se possam considerar discutíveis os efeitos colaterais medidos pelo número de vítimas civis.
Por muito que nos custe o desaparecimento de Charb, de Cabu, de Wolinski e de outros jornalistas do «Charlie Hebdo», dos polícias e dos membros da comunidade judaica, os atentados de Paris só ilustram o desespero dos assassinos. É dos livros, que as feras feridas passam a atacar em todas as direções causando danos imprevisíveis. E, nesta altura, à medida que os insucessos vão-se repetindo no terreno, menor capacidade de atração para a sua causa será obtida pelo Daech ou por outros islamistas radicais.
Para Olivier Roy o autodesignado califa Baghdadi é uma reencarnação de Pol Pot, ambos personificando uma forma de messianismo revolucionário e apocalítico.
Ao contrário dos que os acusam de pretenderem um regresso à Idade Medieval, esses radicais adotaram uma estrutura política e propagandística como as intentadas no século XX por poderes ou organizações apostadas em “substituírem o velho pelo novo.”
O que se assistiu nestes dias - com declarações de repúdio de muitos líderes políticos e religiosos muçulmanos - foi à deslegitimação do Daech e da Al-Qaeda como quintessência do Islão. Um esforço a prosseguir. Por muito que se reivindiquem da “pureza de valores” dos primeiros anos de proselitismo do Profeta e enalteçam um imaginário islâmico, esses alucinados devem ver-se confrontados com o que são na realidade: uns falhados. Porque, ouvindo-lhes os testemunhos chega-se quase sempre ao mesmo estereotipo: o Islão surgiu-lhes como alternativa à frustração de não vislumbrarem perspetivas de satisfação pessoal. Que passou a parecer-lhes possível com a morte por martírio, como confirmámos na opção final dos irmãos Kouachi.
É falsa a sua crença no Estado islâmico, já que a preocupação de cada um deles é consigo mesmos. Por isso nunca os ouvimos falar de como será a sociedade depois da jiahd: longe de serem utopistas, eles limitam-se a viverem para o seu objetivo suicidário.
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