O pós-Charlie está a suscitar debates controversos sobre as réplicas, que se vêm sucedendo a tão intenso sismo.
O Papa falou do assunto para criticar quem recorre à liberdade de expressão para ofender as crenças religiosas alheias.
No “L’Obs” um colunista, que até costumo ler com atenção, Delfeil de Ton, acusou Charb de instigador do seu próprio assassinato e do dos colegas ao apostar reiteradamente nas provocações aos islamitas.
O ator Dieudonné foi preso por utilizar o seu direito à liberdade de expressão para se identificar com Amedy Coulibaly, um dos assassinos dos atentados da semana passada.
Nos liceus franceses verificaram-se centenas de incidentes com muitos miúdos a recusarem-se a respeitar o minuto de silêncio pelas vítimas dos atentados terroristas.
Todas estes casos justificam, que nos confrontemos com algumas questões pertinentes:
a. Faz ou não sentido blasfemar contra dogmas religiosos? Corresponde ou não ao respeito pelo outro, que deve constituir um dos mais genuínos valores republicanos?
b. Caso se aceite a justeza do uso da blasfémia, até que ponto ela poderá ser efetivamente eficaz nos objetivos mais ambiciosos, que possa pretender?
c. A liberdade de expressão é algo de ilimitado ou deverá ter fronteiras que não se devem ultrapassar?
d. Fará sentido permitir que valores religiosos se sobreponham à cultura laica na escola pública republicana?
Confesso, que não possuo certezas definitivas sobre algumas destas questões. As mais fáceis de responder são as duas últimas: a liberdade de expressão é um valor quase ilimitado, mas pode, e deve ser cingido, quando serve para transmitir mensagens de ódio, preconceitos raciais e apelos à violência e assassinato de quem quer que seja.
Por isso Dieudonné está bem preso e deverá ser julgado pela expressão do seu sentimento antissemita. Mesmo invocando a sua condição de comediante, existe uma diferença de tomo entre ele e os caricaturistas do «Charlie Hebdo»: enquanto estes queriam fazer rir com a desconstrução de mensagens de ódio, ele usa este tipo de mensagem para estimular o recurso à violência. Não existe, pois, azo a qualquer semelhança.
Quanto á escola pública, constitucionalmente laica, não pode haver qualquer transigência com a ostentação de símbolos, vestuários e comportamentos religiosamente identificáveis. Ela é um local para difundir o saber e os conhecimentos, sem neles dar espaço aos preconceitos inevitavelmente ligados a dogmas religiosos.
Quanto às duas outras questões pode-se sempre equacionar a eficiência da criação do riso quando se trata de desrespeitar algo ou alguém.
Ser ou não ser iconoclasta eis a questão!
Ora o que Charb e os companheiros faziam ao recorrerem à imagem do Profeta era desrespeitar o princípio muçulmano de se proibir a sua representação.
Mas podemo-nos perguntar porquê? O que é Maomé mais do que Jesus, Buda ou outros símbolos religiosos, que a pintura e a escultura tanto utilizaram como tema ao longo de séculos?
Gostaria que um muçulmano me respondesse a essa questão singela: que tipo de pecado implica não aceitar essa proibição?
A verdade é que os avanços das ciências e dos comportamentos sociais foram tais, que as religiões, com o islamismo na primeira linha, sentem o quão em perigo estão. Por isso, mexa-se-lhes num dogma e logo temem ver os outros descambar por arrastamento.
Não tardará que se conclua que as religiões mais não são do que códigos de etiqueta e de definição de valores, que tinham algum cabimento na época em que viveram os seus fundadores, mas sem qualquer nexo para as sociedades atuais!
Por muito que lhes custe a aceitação de um mundo sem deuses imateriais, constituirá um avanço civilizacional, que muito contribuirá para uma sociedade mais livre e responsável. Porque cada um deixará de se preocupar com um julgamento superior sobre os seus atos e será confrontado com os únicos juízes, que realmente importam: ele mesmo e a sociedade em que se integra. Nela deverá cumprir os princípios fundamentais da tolerância e do respeito pelos outros sem lhes querer impor os preconceitos, que porfie em manter dentro de si.
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