domingo, 1 de junho de 2014

LIVRO: «Mali, ô Mali» de Erik Orsenna

Viajante infatigável, Erik Orsenna é autor de uma obra vasta, que tanto é capaz de abordar a globalização do comércio do algodão como a riqueza da língua francesa.
Doutorado em Economia e conselheiro de Estado, Orsenna terá escrito a autobiografia de um conhecido presidente africano e os discursos de François Mitterrand no Eliseu.
Há vinte e cinco anos ganhou o Prémio Goncourt com o romance «A Exposição Colonial» e em 1998 foi nomeado para a Academia Francesa.
Agora decidiu regressar aos romances, trazendo na bagagem uma personagem a que já recorrera há mais de uma década: Madame Bâ. É através dela que vai abordar a atualidade maliana, que ele conhece bastante bem de muitas estadias aí passadas, mas sobre cujo presente lhe faltava operar a devida reflexão.
Madame Bâ estava a viver a sua merecida reforma de décadas passadas como professora, quando sente o apelo da terra natal e decide tomar o avião para Bamako. O objetivo é olhar e ouvir o que ali se passa para propor o seu programa de redenção dos seus compatriotas: o controle da natalidade, a melhoria da educação das mulheres e da população em geral e a criação de maiores obstáculos ao recrutamento de novos apoiantes pelas organizações terroristas.
“Acalmar o ventre das mulheres” é para ela a melhor forma de combater os jiadistas.
Orsenna explica o recurso a Madame Bâ: “os escritores criam personagens para melhor poderem explorar o mundo”, porque a ficção consegue abordar mais facilmente a complexidade e as frágeis verdades relacionadas com a realidade em que volta a inserir-se.
Para facilitar o discurso narrativo, o autor utiliza o neto de Madame Bâ como griot, ou seja, como contador das sucessivas vicissitudes por que irá passar a avó. Porque a tarefa não se adivinha fácil para as duas personagens, que se deparam à chegada com uma verdadeira multidão de refugiados: se onze anos atrás a cidade contava com um milhão de habitantes, agora quase atinge o triplo. Por isso mesmo é uma bomba à beira de explodir.
Michel, esse narrador que escolhe passar a chamar-se Ismael, vai desfilando histórias, umas atrás das outras, sempre ciente da imprescindibilidade das lendas, da mistura entre o sonho e a realidade.
Madame Bâ, que se assume como uma espécie de Joana d’Arc africana, irá conhecer um périplo entre o glorioso e o desesperado à medida que vão navegando no Niger para montante, e encontra mulheres escapadas à justa aos horrores da charia, a movimentada economia ilegal a transitar pelo Saara ou os militares cobardes e corruptos com esposas gananciosas focalizadas na utilização dos seus cartões de crédito. Ela constata a cumplicidade dos bandidos com os jiadistas e encantar-se-á com os músicos  e os tecelões.
Às tantas compreenderemos, que as fragilidades do Mali não são muito diferentes das que nós próprios conhecemos nesta Europa devastada pela austeridade.


Sem comentários:

Enviar um comentário