Será demasiado tarde para salvar o presidente Kennedy? Para desviar a bala do seu assassino nesse 22 de novembro de 1963 em Dallas?
Questões absurdas, insensatas. Salvo quando se pode viajar no tempo. Em H.G. Wells entrava-se numa máquina cheia de botões e de êmbolos para poder enganar as leis da física. Em «Regresso ao Futuro», o filme de Robert Zemeckis, bastava utilizar um carro movido a plutónio.
Em Stephen King nada disso é necessário: o romancista apropria-se do mais clássico dos temas da ficção científica do mesmo modo como costuma recorrer aos fantasmas, aos lobisomens e a outros pesadelos do imaginário coletivo. Ou seja dissimulando-o na mais trivial das realidades, que aqui corresponde a uma roulotte de venda de hambúrgueres. É no fundo da sua dispensa, por trás dos caixotes de cartão e das garrafas de ketchup que se encontra uma estranha passagem através da fronteira temporal. Basta dar uns passos a mais para se ficar em 1958!
Antes de enfrentar um dos grandes traumas da história americana, Stephen King dá-se ao prazer de passear demoradamente por essa época, o que explica as mais de 900 páginas da edição francesa.
Jack Epping, o protagonista, vê-se inicialmente no Maine o que é perfeitamente explicável, já que se trata do Estado onde Stephen King nasceu e onde situou a grande maioria dos seus romances.
Porque os males do mundo (a guerra do Vietname e tudo o que se seguiu como sua consequência direta e indireta) podem esperar um pouco mais, o escritor dá-nos uma retrospetiva excitante desses finais da década de 50: a primeira missão de Jake - impedir outros crimes menos conhecidos - leva-o a Derry, uma cidade fictícia já conhecida de outras obras do autor, nomeadamente de «A Coisa» (1986), onde um assassino de crianças, disfarçado de palhaço, executava os seus crimes nos esgotos.
Ora, se tal história nada tem a ver com esta que nos ocupa, o visitante vindo do futuro continua a sentir nela um perigo iminente: «Algo de maléfico permanecia na cidade…». Mais: até se cruza com personagens familiares: Beverly e Ritchie, os adolescentes daquele romance, que voltam a personificar a candura e a ternura.
«22/11/63» constitui, pois, a viagem intima do escritor pelo seu próprio universo, feito de paixões e inquietações. Encontramos todos os seus temas cuidadosamente desenvolvidos como se se tratasse de um livro-testamento. Além de um herói, que quer alterar o rumo da História como em «Dead Zone» (1979), voltamos a encontrar homens abusadores, perturbados e violentos, a exemplo do próprio pai do escritor e do Jack Torrence de «Shining» (1977). Também surge o alcoolismo, que foi um pesadelo vivido por King durante muitos anos. Ou ainda adolescentes, que poderiam ser colegas da desafortunada Carrie (1974) ou do grupo de amigos de «Conta Comigo». Tudo envolvido em música rock.
Em 1958, quando estavam na moda os Everly Brothers, as McGuire Sisters ou os obscuros Danny and the Juniors, Stephen King tinha 11 anos. Era demasiado jovem para ver a época pelos olhos do seu protagonista, mas pode recorrer a muitas das suas recordações. Durante a viagem sonda os próprios fantasmas e os dos seus compatriotas.
Ei-los, pois, esses gloriosos fifties, período de poucas preocupações e de pleno emprego em que ninguém fecha a porta à chave, o preço da gasolina é ridículo e a cerveja ou o leite ainda possuem a suavidade autêntica do seu gosto real, sem aditivos.
É uma espécie de idade do ouro em que Kennedy parece capaz de construir a sua própria Camelot. Mas King não se ilude com esse mito, porque Epping não deixa de comentar que «os americanos sentem muita nostalgia. Talvez por terem esquecido até que ponto o passado cheirava mal». Ou «porque nunca encararam verdadeiramente com a realidade dos anos 50». Que tinha o odor do fumo tóxico das fábricas ou do tabagismo coletivo e em todos os lugares possíveis. Mas não só: eram também anos de sexismo, de puritanismo, de segregação racial (e basta a Epping uma visita às casas de banho de uma área de serviço para comprová-lo, com uma para os homens, outra para as mulheres e outra para “gente de cor”).
Ao volante do seu Ford Sunliner, e aproximando-se cada vez mais do Texas e da data fatídica, Jake Epping vai testemunhando um grande fresco americano de cores contrastadas, onde o único sonho e tempo que valem a pena são os suscitados pelos laços com as pessoas.
Se ele começa a sentir-se em casa é porque encontra o que esse passado tem a oferecer-lhe de menos espetacular: gentes normais.
Jake apaixona-se por uma mulher desse passado: Sadie, alta como ele, e desajeitada, torna-se o foco da nostalgia e com quem o sentimento amoroso se faz incontornável quando dançam numa festa estudantil na escola onde ele dá aulas e ela é bibliotecária.
Por seu lado Kennedy e o seu presumível assassino, Lee Harvey Oswald, estão presentes em longas páginas muito documentadas, mas nunca fastidiosas, sob a forma de uma investigação pormenorizada.
Foi ou não uma conspiração? Será que o assassino trabalhava por sua própria e exclusiva conta? Será necessário clarifica-lo antes de o eliminar?
Quando o romance se passa a localizar no Texas tudo se acelera e o exercício de estilo torna-se entusiasmante ao ponto de não querermos larga-lo até o concluirmos. Um efeito frequente quando se lê Stephn King…
Que aconteceria se o 35º presidente dos EUA tivesse sobrevivido? Teria havido a guerra do Vietname? Como teria evoluído a luta pelos Direitos Cívicos? E as relações com os países do leste europeu?
Batem as asas de uma borboleta aqui, ocorre um tsunami acolá! King diverte-se a recorrer aos estereótipos do género, ao baile dos paradoxos, às mil e uma maneiras de resolver o quebra-cabeças dos futuros múltiplos!
O passado resiste e Jake Epping tem dificuldade em vencê-lo. A cura das feridas do tempo, mas também o seu tóxico encanto, é muito mais complicado do que parece.
Para conhecer a resposta é preciso concluir a viagem com Stephen King e dar todo o sentido a uma conhecida expressão de Albert Einstein: “não é o tempo que passa por nós, somos nós que passamos pelo tempo!”
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