sábado, 17 de dezembro de 2016

(P) A morte anunciada da Cornucópia

A previsível morte do Teatro da Cornucópia tem dado azo a hipocrisias, que só não causam espanto,  porque alguns dos seus protagonistas já nos habituaram a carpirem lágrimas por quem decididamente contribuíram para, antes, espetarem a faca. É o caso do CDS-PP que, pela voz de Teresa Caeiro veio expressar indignação por algo, que o governo anterior tanto contribuiu em concretizar.
Lembremos que há dez anos a Cornucópia recebia 600 mil euros anuais para subsidiar as suas produções enquanto atualmente, e depois dos cortes operados durante os quatro anos de desgoverno passista, esse apoio reduziu-se para pouco mais de metade.
Há, porém, uma outra vertente, que não deveremos esquecer: fortemente centralizado em Luís Miguel Cintra e em Cristina Reis, o projeto nunca cuidou de garantir a continuidade, quando os seus responsáveis já não pudessem continuar a sê-lo. O exemplo do Teatro Municipal de Almada onde a transição de Joaquim Benite para Rodrigo Francisco aconteceu com naturalidade embora a morte daquele tivesse algo de inesperado, não se vislumbrou ali.
Depois de, com a rutura com Jorge Silva Melo, o projeto da Cornucópia ter passado a ser cada vez mais o seu, quem é que Cintra preparou para lhe suceder? Daí que, há muito tempo se prenunciava o fim de algo a que assistíramos em todas as suas fases: a do nascimento com uma peça de Molière, a da afirmação com Brecht logo após o 25 de abril (continua a ser uma das minhas mais gratas memórias teatrais o «Terror e Miséria no III Reich») e depois os grandes anos de peças inesquecíveis interpretadas por gerações sucessivas dos nossos melhores atores.
O crepúsculo há muito sentido desapegou-me do que antes entendia quase como gesto militante, o de nunca faltar a cada proposta. Às tantas começámos a notar em Cintra os sintomas evidentes da doença, que o cansa, o leva a baixar definitivamente os braços. Adivinhámos que a notícia agora conhecida não demoraria muito a concretizar-se.
Não deixa de ser igualmente paradoxal que quase tendo silenciado o seu protesto nos anos dos governos de direita - lembramos-lhe muito mais o pendor crescente para o misticismo católico de que parece ter-se feito fervoroso cultor - Cintra propicie à direita a oportunidade para confrontar o atual governo com o que só tem a ver com a forma como ela tratou a Cultura nos anos em que a maltratou.
Importa ainda sublinhar que, onde compreensivelmente por razões de saúde, Cintra desista, outros, com muito menos apoios, insistam em criar  novos espetáculos e conquistar públicos até agora alheios ao seu fascínio. E que experiências nos têm proporcionado apesar das dificuldades com que se debatem!
Com a Cornucópia sucede o mesmo que com os nossos mais estimados heróis. Gostaríamos que eles fossem imortais, nunca decaindo daquele momento grandioso em que foram mais admiráveis, mas temos de aceitar a sua decrepitude, só lhes desejando que morram em paz.

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