Uma das pessoas mais interessantes, que conheci, chamava-se Leitão e era Oficial da Marinha Mercante. Debatemos acaloradamente ideias na época em que elas quase nos levavam a vias de facto, tão entusiasmados andávamos com os respetivos pontos de vista. Eu, dogmático maoísta, ele um seguidor convicto das ideias de Edgar Morin, o filósofo há muito expulso do Partido Comunista Francês.
Primeiro, enquanto navegávamos para o Golfo Pérsico no «Inago», depois para o Mar Negro no «Hermínios», passámos horas a atirarmos um ao outro as discordâncias quanto ao que então defendíamos.
Estávamos em 1976, eu tinha vinte anos, e ao contrário de Paul Nizan, acreditava ser a mais bela idade, que se poderia ter. Até porque andava apaixonadíssimo, e já casado, por quem me viria a acompanhar nestes quarenta anos desde então decorridos, e imaginava possível transformar todos os sonhos em realidades.
Uma das discussões então tidas com o Leitão tinha a ver com a Filosofia e a evolução, que dela seria expetável assistir: tendo começado por congregar em si todos os saberes, vira um a um, dissociarem-se em múltiplaa derivações, cada uma constituindo ciência autónoma. Matemática, Anatomia, Física, etc.
E, no entanto, leis existiam que correspondiam exatamente à mesma lógica em cada um desses saberes, embora não se concertassem numa mesma interpretação quanto ao que versavam. Por isso o futuro tenderia a ser novamente dominado por essa Filosofia, que permitiria interpretar as realidades de forma mais global, quase holística.
Não pudemos prosseguir as nossas discussões intelectualmente assaz estimulantes, não só porque logo me dissociei da ideologia em causa, mas sobretudo, porque o Leitão foi uma das poucas vítimas mortais numa tentativa de golpe de Estado em São Tomé, em 1979, quando Miguel Trovoada quis derrubar o então presidente Pinto da Costa. Apanhado entre dois fogos, numa altura em que comandava o navio, que ligava a ilha da capital à do Príncipe, ele desaparecia numa altura em que acumulava documentação para o prometido ensaio sobre o assunto.
Recordei-me desse meu passado ao ler que Edgar Morin, agora com 95 anos, foi homenageado pela Unesco e ali disse algo, que ressoa ao que conversava com esse saudoso amigo: “tudo o que nós somos está disperso por múltiplos saberes e daí resulta a grande complexidade do nosso pensamento e da nossa relação com a realidade. Só a solidariedade e a responsabilidade devem ligar-nos e fortalecer-nos. O pensamento complexo liga-nos ao mundo e assim transportamos em nós toda a complexidade do universo.”
Somos seres muito complexos, mas de facto a solidariedade e a responsabilidade devem orientar-nos para a importância de não nos conformarmos com este mundo terrível em que vivemos, apostando assim na sua transformação. Já não tanto por o querermos formatar à luz do que nele desejaríamos encontrar, mas exigindo-lhe padrões mínimos de decência.
Van Gogh
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