O Alberto Seixas Santos morreu na semana passada. Embora a obra em forma de filmes não seja vasta nem brilhante, dele ficou um dos retratos mais pertinentes sobre o que foram os anos da ditadura.
Brandos Costumes, assim se chamava esse, que foi um dos títulos emblemáticos do cinema português dos anos 70.
Meses atrás, o João Lopes relembrara a obra mais recente, cujos protagonistas eram jovens, e questionara-o se gostaria de mudar de corpo, trocando com um deles, para viver estes tempos presentes e os que se avizinharão.
A resposta negativa surpreendeu-o: Por todas as razões e mais uma, mas sobretudo porque esta é uma sociedade que vai ser muito dura para eles.
Esta é sensação muito lógica para os que olham para a realidade com os olhos cansados de quem já muito viveu. Por muito que se queira ser otimista na vontade, a razão impele-nos para o pessimismo.
Cinquenta anos atrás, quando frequentava os primeiros anos do liceu, as inquietações decorriam de haver uma guerra para onde se teria de ir. Ou não porque, à boca calada, já se começavam a citar os exemplos dos que tinham atravessado as fronteiras e acautelado a vida e as convicções a conveniente distância da polícia política e das chefias militares.
Porque escasseava a carne para canhão, os empregos abundavam, tanto mais que os empreendedores do regime aproveitavam as oportunidades de negócio para criarem impérios económicos à conta da industrialização quase toda por cumprir. Embora o meu pai tenha vivido o ano de 1961 angustiado com a falta de trabalho depois de uma operação cirúrgica, cuja recuperação desaconselharia o regresso ao ofício de torneiro mecânico, a facilidade com que se reciclou em técnico de televisão condiz com essa relativa mobilidade social e profissional.
Mal adivinharia ele que o filho, aquele miúdo aquietado com o seu regresso a casa depois de dias (que terão parecido semanas, senão mesmo anos) de ausência no hospital, viveria trinta anos depois angústias similares, por ter inadiáveis encargos familiares e os armadores de sucessivos navios seguirem a moda de então, a dos salários em atraso. Algo quase desconhecido nesse mundo no diminutivo, que eram os anos sessenta em Portugal, quando os ordenados eram «baixinhos, mas certinhos».
Angústias continuam presentes nos pais de hoje, já chegados à idade de serem avós, e veem os filhos desempregados ou em empregos precários, as crises económicas a refletirem-se nas conjugais, porque perante tanto que consumir o dinheiro escasso deixa sempre muita margem para frustrações.
Quão bem compreendo o Alberto e decerto o imitaria na escusa desse convite para voltar a vestir o corpo e a idade de um jovem dos nossos dias. Os perigos são imensos e as possibilidades para se vir a ser feliz ainda mais reduzidas.
E, no entanto, andamos há muitas gerações a procurar a chave capaz de abrir as portas para esse território luminoso onde nos sentiríamos devidamente realizados.
Pensámos consegui-lo na cumplicidade dos grandes esforços coletivos, mas fomos sabotados por quem convenceu a maioria quanto a melhor solução no primado do indivíduo, que só alguns, os de mérito efetivo, tenderiam alcançar. E foram tão hábeis a disso convencerem quase todos, que os vimos acreditarem ser eles os favorecidos com essa chama quase divina.
Agora, anos passados sobre o decretado fim das grandes utopias, os iludidos, os desencantados por descobrirem nunca poderem almejar os prometidos paraísos, voltam-se para o ressurgimento da antiga ideia coletiva. Não como construtores, mas como demolidores de edifícios decrépitos. Aqueles onde julgam habitar os tais favorecidos com o mérito de terem chegado mais longe, constituindo-se na detestada elite.
Pobres almas permanentemente manipuladas: não compreendem quanto estão a ajudar os mais elitistas dos elitistas a empurrarem de tal estatuto os que já nele não poderão caber. Porque ainda acreditam na democracia e na igualdade entre todas as etnias e credos, e a nova ordem não se prende com tais minudências. As botas cardadas e as novas cruzes suásticas sonham com novos impérios para mil anos e querem todos a marchar pelo mesmo toque de caixa, produzindo barato e sem queixumes.
Poderá ser essa a tal sociedade, que o Alberto adivinhava vir a ser para os jovens de hoje. A menos que despertem e imitem os do passado, os que procuravam as praias por baixo das pedras da calçada e apenas se contentavam com o que lhes parecia real, o impossível...
Nikias Skapinakis, O mundo ao contrário
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