Vivemos num mundo em que abundam os campos de refugiados, de deslocados e de emigrantes. António Guterres, à frente da Organização das Nações Unidas incumbida de prestar apoio aos que são tidos como «oficiais» lá vai fazendo o que pode, mas o problema tem-se avolumado sem que se vislumbrem condições para o resolver.
Recentemente um coletivo de diversos investigadores de tal temática publicou uma abordagem aprofundada - «Un Monde de Camps», La Découverte - de que vale a pena sintetizar os fundamentos e conclusões a que chegaram:
No seu preambulo, o coordenador do estudo, Michel Agier, considera urgente que se dê a conhecer essa realidade, que ainda é praticamente desconhecida da maioria dos europeus. Por exemplo, em 1992, foi criado o campo Dadaad no leste do Quénia, que conta com 450 mil habitantes, maioritariamente somalis.
Pela sua dimensão, tal campo rivaliza em população com muitas cidades africanas. Mas, singularmente, procure-se num mapa a respetiva localização e não se a encontrará.
Para Agier os campos constituem uma realidade ulterior à guerra fria, muito embora o facto de manterem fechadas pessoas, que não cometeram qualquer delito, mas têm limitados os seus mais básicos direitos humanos, remeta para os campos de concentração, criados no final do século XIX na África do Sul e que tomaram as proporções dos campos de extermínio durante a 2ª Guerra Mundial.
Hoje a cartografia dos campos distribui-se de acordo com a geopolítica mundial: no sul surgem os campos de refugiados e de deslocados; no norte os centros de detenção onde se prendem os sem-papéis; e entre os dois os acampamentos semiclandestinos dos que tentam a passagem entre os países subdesenvolvidos do sul e a ilusória prosperidade dos situados no hemisfério norte. Há ainda a realidade dos países emergentes, que abrem campos de trabalhadores aos que conseguem atrair para os seus grandes estaleiros de construção.
Podem ser considerados cinco tipos de campos:
Os «campos oficiais», que acolhem os que fugiram do seu país de origem e são administrados pelas agências internacionais como o Alto Comissariado para os Refugiados. No período entre 2010 e 2013 eram 450 e incluíam seis milhões de pessoas. Hoje, com o êxodo dos sírios para a Turquia e para o Líbano esse número já terá ultrapassado os sete milhões. Entre os mais antigos estão os dos palestinianos, já existentes há mais de sessenta anos, e que contam com milhão e meio de pessoas.
Os «campos de deslocados», que saíram das suas casas e regiões, mas continuam dentro dos seus próprios países. É o caso dos quatrocentos mil haitianos afetados pelo terramoto de 2010, da população do Darfur, de iraquianos, afegãos, sírios, birmaneses, congoleses, etc. que atingem um total de seis milhões de pessoas.
Os «acampamentos semiclandestinos» dos que agrupam emigrantes à procura de alcançarem os países ricos. São acampamentos efémeros, autogeridos e sem qualquer controle das administrações locais. Existem no norte de Marrocos, na Grécia, na fronteira entre o México e os EUA. São milhares, mas sem que se possa calcular o total de quantas pessoas abrangem.
Os «centros de detenção administrativa», para onde são encaminhados os clandestinos apanhados nos tais países vistos como «paraísos» para os africanos, asiáticos e latino-americanos, e que os expulsam tão rapidamente quanto possível. Existe um milhar deste tipo de estabelecimentos no mundo, dos quais quatrocentos ficam na Europa. O de maior dimensão fica na Ilha Christmas na Austrália e é uma autêntica prisão ao ar livre.
Os «campos de trabalhadores emigrantes», cujo número e dimensão também permanece incalculável. Situam-se no sul da China, na Amazónia, na África do Sul, nas zonas agrícolas de Espanha e Itália, para alojar mão-de-obra, que se pretende manter afastada dos centros urbanos. Por exemplo os “labour camps” do Qatar contêm um milhão de trabalhadores nepaleses, filipinos e de outras origens, que vivem completamente isolados do mundo exterior. Sem qualquer direito, têm o passaporte nas mãos do empregador pelo que não podem arriscar-se a visitar o souk ou os centros comerciais de Doha. Durante quatro anos conformam-se em viver exclusivamente entre o sítio onde dormem e aquele onde trabalham.
Recentemente António Guterres declarava «odiar os campos». É que, como constatou o filósofo italiano Giorgio Agamben em 1997 o campo vive num autêntico «estado de exceção» com o indivíduo à mercê de um poder absoluto, inclusivamente quanto a deixá-lo viver ou morrer! Para ele a globalização significava a regressão dos direitos humanos com a proliferação de situações correspondentes a esse mesmo «estado de exceção».
Michel Agier confessa a influência do italiano na sua investigação, que se socorre também das teses de Hanna Arendt sobre os «apátridas» ou os «sem Nação», que estavam colocados à margem dos países e dos seus povos e, por isso mesmo, se tornavam indesejáveis condenados a serem atirados para dentro de campos circundados por arame farpado ou para barracas.
Mas, mesmo na sua precariedade, esses campos não inibem quem ali vive das suas aspirações a um futuro diferente. Por isso mesmo apropriam-se desses espaços e procuram gerar dentro deles as condições para se sentirem de alguma forma estabilizados. É o que se sucede em Chatila, no Líbano, que começou por ser um campo palestiniano e hoje integra também sírios, sudaneses, iraquianos e até libaneses pobres.
Michel Agier constata com surpresa que alguns habitantes passaram a gostar de viver nesses campos já que não se sentem pertencentes a qualquer outro lugar. Explica-se assim que os refugiados togoleses do campo de Agamé, situado no Benim, tenham recusado voltar para casa ou que os filhos dos vietnamitas repatriados para França em 1954 continuem a passar férias no sítio onde se localizava o campo onde tinham sido provisoriamente instalados, quando eram crianças, havendo até quem faça projetos para ali se instalar quando chegar a hora da reforma...
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