Há trinta anos, quando me tornei militante do Partido Socialista, tive a oportunidade de assistir a diversas conferências promovidas pelo Gabinete de Estudos no Largo do Rato e onde alguns dos principais dirigentes de então explicavam a razão de ser de algumas das suas estratégias.
Um desses dirigentes era João Cravinho, que tinha a capacidade de aliar simplicidade e profundidade na abordagem dos assuntos sobre que versava.
Passados tantos anos essas qualidades continuam intactas, se não mesmo mais refinadas, como se comprova no texto “As ilusões da ortodoxia oficial: competitividade e modelo de crescimento”, hoje inserido no «Público».
Trata-se de uma abordagem de leitura obrigatória para compreender um dos problemas mais graves, que o novo governo irá enfrentar e para o qual contará aplicar as medidas previstas no documento da «Agenda para a Década»: a fragilidade do tecido empresarial português.
João Cravinho começa por desmontar as três ilusões fundamentais disseminadas na cabeça de muitos portugueses nos últimos anos:
A primeira tem a ver com o suposto “ êxito” da austeridade: é quase pungente ouvir os derradeiros paladinos desta tese defenderem-na, apesar de serem tão evidentes as falácias em que suportam os seus propósitos. Mas, mais do que isso “uma austeridade prolongada por 20 anos (tal como exigido no Tratado Orçamental) torna praticamente impossível o alcance do crescimento de que o país precisa”. É que austeridade não se conjuga em nada com a exequibilidade de um qualquer crescimento.
A segunda ilusão tem a ver com a importância das chamadas “reformas estruturais” na criação de condições de competitividade para as empresas portuguesas. Ora, dado que essas “reformas” apenas se cingem à precarização do emprego, à redução dos ordenados e das garantias de quem trabalha, é evidente que elas em nada contribuem para os seus supostos objetivos. Porque nem Portugal jamais conseguirá competir em preço com países onde os mesmos produtos saem mais baratos, como os portugueses jamais aceitarão descerem os padrões de qualidade de vida aos níveis do Terceiro Mundo.
Para João Cravinho a discussão sobre os custos unitários de trabalho só serve de argumento para prosseguir as “transferências regressivas de rendimento”.
Como diz mais à frente: “Os paladinos dos custos unitários seriam muito mais avisados se, em vez de proporem cortes de salários, insistissem na necessidade de fazer crescer a produtividade ou defendessem cortes de outros custos unitários, uma vez que os custos do trabalho apenas representam 1/3 (ou menos) do custo total. Continuariam enganados, mas ao menos teriam sido mais úteis.”
A terceira ilusão tem a ver com a viabilidade de “um modelo puxado pelas exportações, ao mesmo tempo que a austeridade comprime sem limites a procura interna.”
Bem tentou vítor gaspar promover esse conceito ideológico enquanto foi ministro de passos coelho e teve de desistir por comprovar a falência do seu preconceito.
O consumo interno revela-se imprescindível para agilizar a economia nacional e, nesse aspeto, a direita deveria ter prestado louvores ao Tribunal Constitucional por ter impedido tantos cortes nos esvaziados bolsos dos portugueses. Para João Cravinho “o crescimento adequado da procura interna é imprescindível para que Portugal possa crescer e criar emprego.”
Desfeitas, pois, essas três ilusões, há que virar drasticamente a página do consulado de passos e de portas para olhar para o futuro e optar por uma outra estratégia: “a política de crescimento da produtividade e da competitividade tem de ser desenhada especificamente em função de alvos empresariais também especificamente identificados, o que é essencial para contextualizar realisticamente os objetivos e os conteúdos das medidas em causa.”
Há que promover a renovação do tecido empresarial, criando as condições para infletir a abrupta queda da formação bruta do seu capital fixo entre 2008 e 2013, que atingiu os 40%.
Só com essa renovação será possível alterar a contínua perda de qualidade dos produtos portugueses, comparativamente com os seus concorrentes nos últimos anos. Quando se exalta a excelência do calçado ou do têxtil português, tais exemplos correspondem à triste figura das raras andorinhas, que não fazem a primavera.
Constata Cravinho: “não só os países mais avançados estão a alargar o fosso que nos separa, como estamos a ser ultrapassados pelo países da Europa Central e do Leste, onde está em marcha um poderoso processo de upgrading qualitativo, que tornará mais difícil no futuro o nosso acesso a mercados europeus de produtos de média-alta qualidade. Portugal está em risco muito considerável de ser despromovido para a III Divisão europeia no que toca à qualidade das suas exportações.”
Para que tal não aconteça, importa desde já iniciar a correção do terramoto, que a desgovernação da direita significou para a vida das empresas e dos cidadãos portugueses.
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