terça-feira, 5 de agosto de 2014

We shall overcome some day!

Quando penso em Pete Seeger lembro-me do seu entusiasmo a cantar na cerimónia de tomada de posse de Barack Obama em 2009, quando ele se tornou presidente dos EUA. Já quase nonagenário, o cantor folk via personalizado no novo habitante da Casa Branca muitos dos sonhos por que tinha lutado toda a vida: uma justiça e uma distribuição de rendimentos mais equitativa, o combate às segregações em função da cor da pele, da idade ou da condição social e um renovado apoio à cultura.
Desconhecemos se Seeger, que faleceu no início deste ano, terá expressado a desilusão de quantos então se entusiasmaram com essa aparente mudança de ciclo na política americana, que afinal se revelou muito semelhante à da que caracterizara os anos do pai e do filho Bush.
Obama é, de facto, uma tremenda deceção para uma imensidão de momentâneos admiradores e isso mesmo ficou evidenciado nalgumas intervenções emitidas na Festa Literária de Paraty, conforme surge reportado por Isabel Coutinho e por Simone Duarte nas peças jornalísticas que assinaram para o «Público».
Ouvindo o que lhes disseram Glenn Greenwald, (o jornalista do «The Guardian», que começou a publicar os materiais facultados por Edward Snowden), Charles Ferguson (o realizador do documentário “Inside Job”) e David Carr, dá para concluir que esse sentimento está muito generalizado na intelectualidade anglo-saxónica.
Obama é o presidente, que conhece um conjunto de crimes perpetrados sob a sua alçada e nada faz para os evitar, até parecendo comprazer-se com a sua propagação. Assim ele:
· tem a noção da enorme fraude financeira praticada em Wall Street relacionada com a crise de setembro de 2008 e nada fez para penalizar os seus autores, nem para tomar as medidas regulatórias impeditivas da sua recorrência. Hoje os grandes grupos financeiros e os especuladores continuam a ter plena liberdade para sugarem as poupanças e os rendimentos dos povos (vide o que se passa com a bancarrota da Argentina) sem que nada trave os seus instintos plutocratas;
· avaliza, como comandante supremo das forças armadas norte-americanas todos os ataques com drones no Afeganistão e no Paquistão que, a coberto do pretexto de incidirem sobre terroristas, já causaram centenas de vítimas civis entre as populações por eles atingidas;
· sabe da espionagem generalizada praticada pela CIA e pela NSA, sem que lhes sejam impostas as regras impeditivas dos seus mais escandalosos abusos - como os denunciados por Edward Snowden;
· ufana-se da tortura praticada sobre alguns “bacanos” (“folks”) e escusa-se a mandar investigar e castigar quem a praticou, muito embora se trate de crime contra a Humanidade sancionado pela comunidade das nações;
· vai presenciando os crimes diariamente praticados pelo exército sionista contra a população civil de Gaza e, atrás das palavras hipócritas de condenação, continua a fornecer armamento a Telavive e a constituir-se seu protetor na condenação tentada pela ONU a nível do seu Conselho de Segurança;
Mas a duplicidade de Obama tem-se constatado noutros aspetos não menos relevantes da política internacional: falhada a tentativa de cortar à Federação Russa o acesso marítimo ao Mediterrâneo através do golpe de Estado praticado em Kiev, arrasta a Europa para sanções contra Moscovo, que prejudicam seriamente os interesses da generalidade dos países da União.
Tendo apoiado e provavelmente fomentado a queda de alguns ditadores de regimes relativamente laicos da bacia mediterrânica - Líbia, Síria, Tunísia, Egito - provavelmente em conluio com o seu aliado saudita, está a conhecer dificuldades para aí impor os seus indigitados ditadores, optando em alternativa por aceitar os que a conjuntura acaba por definir como o mal menor para os interesses norte-americanos por muito que assumam o rosto tenebroso do novo presidente egípcio.
As jornalistas do «Público» dão conta do desencanto dos seus interlocutores com a passividade dos jovens norte-americanos, muito diferentes do comportamento irreverente dos jovens brasileiros. Mas talvez descubramos o quanto estão equivocados e se esteja a criar a vaga de fundo que, a exemplo da costumada aproximação impercetível de um tsunami varra o que está errado no país do tio Sam. Porque, quer se queira, quer não, aquela máxima segundo a qual a riqueza é detida por 1% da população, restando migalhas para os restantes 99%, não corresponde apenas a uma figura de estilo e apresenta exemplos bem reais nessa falsa terra das oportunidades. E, por isso mesmo, voltando ao velho Seeger só temos que ansiar pela promessa por ele já entoada nos anos 60: «We Shall Overcome!»


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