Na sessão temática das terças-feiras do canal franco-alemão ARTE, a apresentadora iniciou o programa de ontem dando como exemplo a tentativa da venda da coleção de quadros de Miró por parte do Estado português. Pelas piores razões, o nosso país serviu de exemplo para o que se seguiria: a lógica da austeridade custe o que custar tem levado diversos países do nosso continente a venderem espaços e monumentos, que são fundamentais para a sensação de identidade dos respetivos povos. E é isso que, durante hora e meia, mostra o filme «A Europa à Venda» de Andreas Pichler.
Começamos por duas montanhas situadas a 2600 metros de altitude postas à venda no Tirol oriental em 2011 por 121 mil euros. A autora dessa proposta de transação foi a Agência Imobiliária Federal, uma instituição pública dependente do governo austríaco.
Tratava-se de algo semelhante a pôr-se à venda a Serra da Estrela apenas se passando a permitir o acesso a ela a quem pagasse à empresa privada, que com ela ficasse.
A autarquia da região, que estava completamente afastada desse processo, interveio e conseguiu o apoio popular suficiente para que a tentativa não passasse disso mesmo.
Foi ao tomar conhecimento de tal aberração, que Andreas Pichler iniciou uma volta à Europa para avaliar os processos de privatização de bens públicos promovidos pelos governos para tal aliciados pela mão invisível dos mercados.
A investigação resulta numa caracterização assustadora da situação, porque a crise serve de pretexto para a venda a pataco do património natural e cultural de muitas regiões europeias.
Na Irlanda, o Estado quase ficou na bancarrota para salvar cinco bancos falidos, mas não se intimidou com a revolta popular suscitada pela intenção de vender todas as florestas do país.
Muito embora tenha sido travada, essa venda não foi completamente posta de parte, o que obriga a uma atenção permanente dos que militam contra a perda do que resta da riqueza florestal da ilha depois de ter sido quase totalmente destruída para a construção dos barcos da Marinha Imperial britânica.
Em Paris o exemplo mais eloquente está situado na sua maior praça, a da Concórdia, onde fica o Palácio da Marinha. Também neste caso esteve em questão o seu arrendamento por 99 anos, o que criou uma tal celeuma, que o governo de Sarkozy recuou e deu o caso como encerrado.
Na Itália de Berlusconi o projeto passou por privatizar os vestígios da Antiguidade, incluindo o Coliseu cuja urgente restauração acabou por ser financiada no âmbito do mecenato, mas sem passar pela planeada afixação de painéis publicitários. E, no entanto, a gestão da bilheteira, atribuída a uma empresa privada garante 70% dos respetivos lucros a esta última e só 30% ao Estado...
Em Berlim são os espaços públicos nos dois lados anteriormente separados pelo muro, que se veem objeto da ganância das empresas imobiliárias, apostadas em criar blocos de apartamentos de luxo e expulsando para a periferia os habitantes históricos do bairro. No afã dessa especulação imobiliária secções do muro convertidas em representativas obras de “street art” são demolidas, sem olhar para o seu valor cultural e afetivo.
Em Barcelona as agências de turismo promoveram a instalação de bilheteiras no até então gratuito Parque Guëll para que os seus clientes se livrem das multidões, que costumavam por aí passear.
E o filme conclui-se na Grécia onde a troika obriga a desrespeitar a Constituição para facilitar a venda de terras e ilhas inexploradas, ainda no seu estado selvagem, para que fundos imobiliários norte-americanos possam ganhar fortunas com os seus projetos milionários.
Entre o cinismo tranquilo de uns e a resistência frágil de outros, a reportagem de Pichler é eloquente sobre um fenómeno que ameaça a liberdade dos cidadãos europeus em decidirem sobre o ordenamento do seu espaço público, urbano ou natural. E que tem a ver com esta lógica capitalista de tudo ser posto à venda e ser passível de exploração apesar de, até então, ter sido um bem de usufruto público...
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