Existe a imagem impressionante de um daqueles gigantescos comícios nazis - porventura o de Nuremberga em 1935, quando se instituíram as leis raciais -, em que, no meio de milhares de braços estendidos em saudação a Hitler, há um homem em pose ostensiva de não comunhão com esse sentir coletivo. Sempre pensei quão imenso deveria ser o interior exílio de quem de turba se sentia apartado.
Há também um filme de Ettore Scola - «Una giornata particolare» - em que todos os vizinhos de Mastroianni e Sofia Loren deixam o prédio deserto, porque vão para um comício com Mussolini. Apesar da homossexualidade dele e do cansaço deprimido dela, partilham a empatia de se saberem diferentes de quantos viviam à volta, mas únicos um para o outro na cumplicidade dos olhares, dos afetos.
Evoquei essas imagens ao longo do dia de ontem, quando as televisões se multiplicaram em manter a visita papal como tema discricionário das suas emissões. O mundo tinha tanto com que se entretivessem os espectadores, mas nada mais parecia ter importância, como se estivesse cingido ao circo mediático de Fátima. Não constatasse a indignação dos ateus e dos agnósticos nas redes sociais e não me cruzasse com tanta gente que, nas ruas, andavam indiferentes ao fenómeno, quase daria para sentir a solidão do alemão do comício nazi ou do improvável casal no filme de Scola. Porque os rituais relacionados com Fátima são tão absurdos, de mistificação tão óbvia, que só nos podemos perguntar o que leva toda aquela gente a neles crer sem sentido crítico, mesmo quando já são os cardeais a virem dizer para a praça pública o quão estúpido é acreditar que, da sua suposta residência celestial, a improvável virgem Maria desceria à Terra para assombrar uns miúdos no meio do nada, que era a Cova da Iria de então.
As estatísticas dizem-me que somos cada vez mais os que rejeitam a existência de qualquer deus, ou pelo menos deles duvidam, mas os poderes apostados em manter as mentes agrilhoadas às coisas tal qual estão, continuam a destilar o ópio, que as leva a nem sequer se desafiarem nas metódicas dúvidas, cujas respostas as tornariam bem mais esclarecidas.
Talvez pensem como o meu pai que me dizia não poderem estar enganadas todas aquelas pessoas, que ali regularmente se dirigiam. Argumento estúpido, que tantas discussões alimentaram, aquando da minha adolescência, e prova eloquente do conflito de gerações entre quem se imbuíra da propaganda salazarista (mesmo dela se julgando distanciado) e quem a rejeitara muito cedo, quando as praias emergiram das calçadas parisienses e as universidades norte-americanas se converteram em campos de batalha por causa da guerra na Indochina.
Há maior demonstração de totalitarismo do que essa tentativa de exibição da mentira através do arregimentamento das almas atarantadas?
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