A histeria relacionada com a visita do Papa chegou ao fim, mas ainda vale a pena abordar o fenómeno religioso com sede em Fátima tendo por pretexto dois dos mais interessantes textos de opinião publicados por estes dias. Num deles, publicado numa das edições do «Expresso», Luís Miguel Cintra confessa como, nascendo numa família bastante religiosa, a acompanhou na fé até chegar à universidade, altura em que se afastou durante décadas, reaproximando dela com cautelas nos últimos anos.
O exercício intelectual de Cintra é tanto quanto possível racional, mas aceitando o mistério de uma transcendência, que o fascina, mesmo sem a conseguir propriamente alcançar.
Para os que creem no divino, mas não lhe aceitam os rituais serôdios, que não são mais do que encenações formais sem real conteúdo, sobreleva de importância a meditação. Quer-se acreditar em algo mais do que o ditado pela materialidade dos sentidos, mesmo só se alcançando a suspeita de uma inatingível margem para que não existe ponte possível.
O outro texto, o do padre Anselmo Borges não segue a mesma lógica, mas é igualmente interessante por considerar urgente a evangelização de Fátima. Porque, sendo Deus pai ou mãe, questiona: “que pai ou mãe sadios precisam que eles [os crentes] se ajoelhem ou se arrastem?”
O joelhómetro de Fátima, que a igreja mandou construir para dar vazão à fútil crendice dos fiéis, é daqueles subcenários do santuário, que revoltam pelo oportunismo de quem fomentou a superstição dos mais frágeis.
Para o padre Anselmo Borges “o único sacrifício que Deus quer é o que é exigido para lutar pela dignidade de todas as pessoas e pelos seus direitos.” E acrescenta: “ Deus não precisa de promessas e que se queimem toneladas de cera, tanto mais quanto Ele quer que a natureza que criou seja preservada.”
Tal como aconteceu entre 1919 e 1926 a Igreja Católica divide-se quanto à genuinidade do fenómeno místico protagonizado pelos três pastorinhos.
Nos primeiros sete anos decorridos desde as visões (em definitivo parece abandonada a tese de se terem verificado «aparições»!) a própria igreja não deu grande crédito ao ali ocorrido, tanto mais que a época estava a ser fértil em fenómenos semelhantes um pouco por todo espaço rural do país.
Foi Cerejeira quem entendeu a importância de arregimentar os crentes em torno do regime salazarista, que lhe permitia inverter a relação de forças ditada pelo jacobinismo republicano e recuperar os privilégios perdidos desde a queda da monarquia.
Criou-se desde então esse misticismo tonto em torno de Maria, cuja única razão para a idolatria residiria no facto de ter sido a primeira mulher a acreditar na essência divina do filho e constituir-se como personagem ideal - através dos cultos marianos! - para contrariar a dominação masculina de quem se invoca nas Igrejas. Quer o Pai, quer o Filho, quer o Espírito Santo são inequivocamente masculinos, faltando-lhes o contraponto feminino, que a religiosidade popular se aprestou a criar por seu intermédio.
O texto de Anselmo Borges parametriza as fronteiras, que Fátima não deve ser, porque, perspetivando a possibilidade de um indiano chegar ao santuário sem nada de catolicismo saber, logo julgaria ver em Maria uma deusa tão idolatrável quantas as do seu panteão civilizacional.
Enquanto ateu não posso senão ver uma imensa farsa em tudo quanto em Fátima acontece. Mas sendo suficientemente flexível para encontrar alguma justificação na sobrevivência da religiosidade católica, que ela sirva o propósito do atual Papa em contribuir para a paz entre os povos e para a redução das desigualdades entre os ricos e os pobres.
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