Tenho boas razões pessoais para lembrar o período em que António Guterres foi primeiro-ministro.
Nessa altura eu ainda cirandava pelos oceanos do planeta a bordo de um navio de carga, por essa altura fretado para transportar mercadorias entre a Europa e portos africanos, entre estes e a Ásia, com uma memorável exceção para a subida do congelado rio São Lourenço no pico do inverno.
Quando recordo esse tempo, forçoso é lembrar os dois meses passados num estaleiro em Xangai ou um curto, mas intimidante, período numa prisão em Douala (Costa do Marfim), acusado de poluir os ares africanos com o fumo da caldeira de bordo. Mas, mesmo distante das lusas praias, esse foi um tempo em que percebi um sentir extremamente positivo nos familiares e amigos que contactava enquanto aqui usufruía as merecidas férias.
Contra a oposição da Indonésia - então importante potência regional! - conseguia-se a independência de Timor-Leste, transformava-se a zona oriental de Lisboa aproveitando a oportunidade criada pela Expo 98 e até se era escolhido para organizar o Euro de Futebol. Era também o tempo em que o excelente Mariano Gago lançava as bases para termos produção científica digna de um país avançado.
Havia emprego, a economia crescia mais do que os demais países da CEE e tudo apontava para que rapidamente integrássemos a dianteira do pelotão dos que tinham os indicadores económicos e sociais mais avançados.
Azar o nosso que, porventura afetado pelo drama pessoal de viver a progressiva evolução da doença da esposa até ficar viúvo, Guterres perdesse força anímica e encontrasse num desaire autárquico o pretexto para desistir e ressacar a dor em privado.
Após o período desastroso em que Durão Barroso e Santana Lopes deram suficientes mostras das respetivas incompetências, Sócrates poderia ter retomado esse fulgor. E quase o conseguiu, porque o défice voltou abaixo dos 3% e o crescimento económico chegou a retomar a dinâmica anterior.
À distância podemos dividir os seis anos da sua governação em duas fases distintas: o antes e o depois da falência da Lehman Brothers. No primeiro arriscou investir tanto quanto possível ciente de alavancar o desenvolvimento do país com infraestruturas potenciadoras de criação de mais emprego e maior sustentabilidade das empresas nelas comprometidas. Por isso, e ao contrário do que seria lícito esperar, as minioligarquias nacionais eram complacentes na convivência com um governo do Partido Socialista, que ideologicamente detestavam, mas no qual depositavam grandes expectativas quanto a lucrarem com as suas políticas.
A reviravolta ocorrida nos mercados financeiros internacionais, suscitada pelo rebentamento da bolha imobiliária nos EUA, aconteceu quando o país não estava preparado para resistir a tal golpe. De repente, vendo no contexto a oportunidade para levarem por diante o resto das contrarreformas de tudo quanto sobrara da Revolução de Abril, os donos dos bancos, das fábricas e dos hipermercados entenderam chegado o momento de defenestrarem Sócrates (a conspiração judicial contra ele terá sido então forjada!) e promoverem Passos Coelho a marionete dos seus interesses.
O resultado foi o que se sabe: se Durão e Santana tinham sido demonstrações eloquentes do princípio de Peter, Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque tornaram-se exemplos ainda mais grotescos na subserviente absorção das orientações alheias (da troika e do sr. Schäuble), sem outra ideia para o país, que não fosse a privatização de tudo quanto ainda tivesse capital do Estado e o empobrecimento da grande maioria dos portugueses.
Chegamos enfim a António Costa e o quanto difícil foi a sua chegada ao governo: além das dificuldades internas suscitadas pelo lamentável interlúdio segurista (cancro ainda não completamente vencido como se comprovou ainda agora com a sabotagem ativa de Manuel dos Santos na estratégia do Partido para a eleição autárquica no Porto!), mas também com a obstrução ativa de toda a imprensa escrita e falada durante uma pré-campanha eleitoral marcada por «episódios» ultramediatizados para desqualificar as suas propostas e valorizar as do PAF.
A formação da maioria parlamentar com os demais partidos da esquerda foi, e tem sido, uma resposta superlativa a tanta tentativa de manter o país amarrado ao fatalismo, à submissão aos ditames alheios. E o clima social voltou a mudar: o povo cabisbaixo, que manifestara em março de 2013 a desaprovação do passismo, mas se confessara vencido no porte, voltou a erguer-se e a ganhar esperança. O otimismo e confiança de António Costa começou a produzir resultados, que nem os mais panglossianos arriscavam possíveis.
É essa positividade que vai contagiando o país de norte a sul e criando sucessos, aparentemente dela arredados, mas que acabam por surgir como naturais efeitos colaterais desse clima: do Euro 2016 em futebol ao Festival da Eurovisão, Portugal vai surgindo nas bocas do mundo como país ganhador. E os portugueses sentem-no, ganham orgulho em tais vitórias.
Cabe assim desejar que depois das tentativas falhadas de Guterres e de Sócrates, seja com António Costa e esta conjugação de esforços das esquerdas que Portugal reocupe na Europa e no mundo o estatuto que lhe cabe como corolário da sua rica História e de quanto talento se potencia no ADN de cada um dos seus.
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