Há precisamente dez anos o grande debate público, que estava a corroer o governo de José Sócrates, tinha a ver com as grandes superestruturas planeadas para alavancar o crescimento do país. O TGV, uma nova autoestrada Lisboa-Porto e o futuro Aeroporto.
Que o último fazia todo o sentido tem-se constatado à medida que a Portela se revela insuficiente para o movimento de passageiros, que dela partem ou a ela chegam, constituindo o Montijo um paliativo, que custará quase tanto como uma estrutura de raiz e com óbices ecológicos ainda por apurar na plenitude.
Quanto às outras duas propostas o tempo se encarregará de demonstrar como elas faziam todo o sentido e, mais tarde ou mais cedo, se hão-de voltar a impor na sua pertinência.
Recorde-se que, nessa época, era a própria Comissão Europeia a emitir orientações para que o investimento público aumentasse como forma de potenciar o crescimento de um espaço europeu em riscos de estagflação. Demasiado imbuído do espírito do «porreiro, pá!», o então primeiro-ministro exagerava na viabilidade de tudo fazer acontecer ao mesmo tempo.
Sempre detestei o espírito mesquinho dos que tendem a apoucar-nos como se, conscientes do seu pouco talento e ambição, impusessem essa resignação a todos os compatriotas. Embora prestando-se a interpretações mais complexas do que esta leitura simplista, a figura do Velho do Restelo, que busca tolher os demais, quando os move objetivos mais ambiciosos, é uma das características de uma certa (falta de) Arte de Ser Português.
Vem isso a propósito de uma curta-metragem de Edgar Pêra intitulada «Arquitetura de Peso». Rodada precisamente em 2007 dava expressão a um cantor pimba que, com vernáculo à mistura, criticava a construção do CCB, da Expo 98, dos estádios de futebol do Euro 2004 e da Casa da Música, com argumentos idiotas, mas convincentes para o público-alvo a que se dirigia. O tema «puta vida cagalhões merda» para além de excitar o lado escatológico dos mais ignorantes, punha esta questão: para quê gastar tantos milhões de contos, ou de euros, em obras de tal dimensão, quando poderiam ser melhor aplicados a reduzir, ou mesmo eliminar a pobreza por todo o país?
Seria expectável que a maioria dos seus potenciais espectadores rejeitasse o argumento mediante a lógica de, existindo obras, criar-se-iam empregos e resgatar-se-iam muitos portugueses dessa miséria. Mas, recordando esse período, foram os futuros promotores de Passos Coelho, e entusiastas da vinda da troika, a matraquearem os argumentos de não haver dinheiro para tanta obra. A austeridade, que depois os levaria a cortar pensões e ordenados, já estava bem imbuída em quem tinha por objetivo afastar os socialistas do poder e, não o conseguindo com urdiduras sórdidas (toda a trama em torno da pedofilia na Casa Pia), souberam aproveitar a oportunidade suscitada pelo rebentamento da bolha imobiliária nos Estados Unidos para cumprirem os seus intentos.
O que me preocupa nesta altura é a capacidade desses mesmos conspiradores em mobilizarem os mais pobres a seu favor. A “canção” de Nel Monteiro, que Edgar Pêra promoveu em forma de filme, mostra como os mais desfavorecidos podem ser facilmente mobilizados para agendas contrárias aos seus interesses. É o que têm tentado, e conseguido com algum êxito, as extremas-direitas ocidentais (Trump incluído), captadoras de milhões de votos de quem lhes será completamente indiferente tão só cheguem ou se aproximem do poder.
Se os vinte e três minutos de filme de Edgar Pêra são esteticamente interessantes - como quase sempre sucede nos seus projetos! - a ambiguidade mais do que suspeita do seu anarquismo ideológico obriga a pensar quão urgente é importante que as esquerdas encontrem modelos de comunicação eficazes para ouvirem e falarem com aqueles, que aspiram a representar.
A transferência de votos de muitos antigos apoiantes dos Partidos Comunistas e Socialistas europeus para as extremas-direitas (particularmente evidentes em França, em Itália ou no Reino Unido), mostram a importância de combater a demagogia dos argumentos simplistas de forma inteligente, mas sem a arrogância de ter todas as respostas e as pretender impor a quem está encolerizado, frustrado, desesperançado. Até pela eficácia com que os terão entretido com futebóis e milagres de Fátima, ao mesmo tempo que lhes inculcaram a tese de ser a política algo que devem execrar ou desprezar.
Sobreviver a Trump, aos muitos Trumpes que proliferam nas várias latitudes, exige essa preocupação em desmascarar-lhes o fraudulento oportunismo e voltar a conquistá-los para visões de futuro credíveis e em que quase todos tenham a ganhar. Enquanto tal não suceder continuaremos a ver sucessivos governos de direita ganharem eleições em França, na Alemanha e noutros países da União Europeia, fazendo do de António Costa uma exceção destinada a ser “normalizada” tão depressa quanto possível. Porque para isso trabalham todos os dias os Schäubles e todos que lhe servem de cúmplices.
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