É muito provável que, ao escusar-se a participar nas comemorações do 5 de outubro, cavaco silva tenha recordado o episódio de 2012, quando hasteou a bandeira ao contrário. Porventura ter-se-á criado na sua tortuosa cabeça a ideia da responsabilidade de António Costa num episódio, que era bem simbólico de um país virado do avesso por ação da sua ativa cumplicidade com a direita ultraliberal.
Quando daqui a menos de quatro meses abandonar o Palácio de Belém, essa imagem persistirá como uma das mais emblemáticas dos dois mandatos de cavaco silva. Porque, se durante os primeiros anos de coabitação com José Sócrates como primeiro-ministro teve de disfarçar o faciosismo, tão credível se ia revelando a governação, outra foi a atitude no momento em que a crise internacional, suscitada pela falência da Lehman Brothers, deitou a perder os sucessos entretanto verificados.
Como padrinho do passismo, cavaco foi o rosto mais impressivo desse país virado do avesso, com os portugueses a sofrerem o desemprego ou a precariedade do emprego, a partida dos filhos para a emigração forçada ou o suicídio de muitos amigos e familiares, incapazes de suportarem a sensação de não encontrarem préstimo nesta sociedade mais preocupada com a opinião dos credores e dos mercados do que com o bem estar dos cidadãos.
Muito embora esta semana tenha sido fértil em muitas conjeturas quanto à possibilidade de manter passos coelho em gestão até à saída do cargo, cavaco silva não terá outra alternativa que não seja a de, a contragosto, empossar António Costa como primeiro-ministro. De facto, demonstrando a sua notável argúcia, o futuro primeiro-ministro conseguiu cumprir, um a um, todos os requisitos impostos por cavaco nos meses anteriores para o que deveria ser o novo quadro governativo: dialogou com as demais forças políticas, construiu uma maioria alargada e sólida no quadro parlamentar e está em condições de ver aprovado um programa compatível com os compromissos externos do país.
Não duvidamos que, na tomada de posse do novo governo socialista, cavaco fará um discurso ainda mais execrável do que o proferido em 2011, quando, acabado de reeleger como presidente de todos os portugueses, logo anunciou a declaração de guerra a quantos nele não haviam votado, em particular ao primeiro-ministro de então.
E é igualmente expectável que nas semanas a decorrer entre o início de funções do governo socialista e a entrega do cargo ao sucessor, ele mova uma guerra permanente, feita de vetos sucessivos, à legislação entretanto aprovada pela esquerda na Assembleia da República. Mas isso só contribuirá para que a sua imagem ainda consiga sair mais deteriorada do que já está.
Ele será - esperemos que por muitas décadas! - o exemplo lapidar de alguém que chegou muito além do que aconselhariam as suas escassas qualidades. A sua saída da presidência, aliada à da condenação da direita a uma longa e merecida travessia no deserto, equivalerá a uma verdadeira revolução no rumo do país e na vida dos portugueses.
Conseguida a convergência da esquerda num mesmo projeto antiaustericida só faltará eleger um Presidente, que com ele esteja convictamente solidário. E não vemos outro, que não seja Sampaio da Nóvoa a personificar esse definitivo erguer bem alto da nossa bandeira, redignificando a função presidencial e enfatizando a identidade inalienável da nossa soberania...
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