Barreiro será a cidade onde António Costa se apresentará logo à noite para explanar o projeto com que pretende transformar qualitativamente a vida dos portugueses nos próximos dez anos.
O regresso a essa cidade motivam-me reminiscências infantis ocorridas há mais de meio século. Na altura o clube preferido por quase toda a família do lado paterno era o F.C. Porto, levando-a a comparecer em peso nos campos e estádios da Grande Lisboa sempre que ali o clube jogava na condição de visitante.
Seixal, Amora, Montijo, Setúbal e Barreiro eram deslocações que cumpríamos a partir da Caparica, onde quase todos morávamos, na expectativa de regressarmos satisfeitos a casa, seja porque o jogo se saldaria por uma vitória, seja porque, na pior das hipóteses ocorreria um empate. Já as idas a Lisboa, seja aos estádios do Benfica, do Sporting ou do Belenenses acabavam invariavelmente mal, porque a derrota era quase sempre certa.
Mas das idas ao Barreiro - e foram muitas quer para ver os jogos com o Barreirense, quer com a Cuf - houve uma que me ficou particularmente na memória embora ainda fosse um petiz de quatro ou cinco anos. Ocorreu no antigo campo do Barreirense, situado quase ao lado do rio, onde, de repente e sem aviso, ficámos imerso em densa nuvem.
Muitos anos depois, quando falávamos sobre o assunto, estalava a controvérsia: entre tios e primos havia, de um lado, os que se lembravam de se ter tratado de nevoeiro, outros que apostavam numa manifestação da poluição oriunda das fábricas então ali abundantes.
A verdade é que ficámos sem ver nada do que se passava em campo, ficando a partida momentaneamente interrompida.
O fenómeno não durou muito tempo e depressa o árbitro voltava a pôr os jogadores de um e do outro lado, a prosseguir com o que estavam a fazer.
A recordação faz sentido, quando os detratores de António Costa o conotam com o messianismo, que tomou a cultura portuguesa desde a batalha de Alcácer-Quibir. A associação de ideias a essa memória infantil também surge como inevitável para evocar a célebre citação de Ortega y Gasset, que dizia: "O homem é o homem e a sua circunstância".
Quem acusa António Costa de messianismo opera de forma muito conformada para com essas circunstâncias: nas crises, quem se apresenta com soluções, tende logo a ser tido como um d. sebastião chegado em dia de nevoeiro.
Mas essa, infelizmente, tem sido a característica comportamental da direita e dos socialistas durante estes últimos três anos: aceitando as imposições da troika como circunstâncias impossíveis de contornar, a elas se submeteram, ora de bom grado como sucedeu com os governantes, ora com a pose lastimosa que sempre tem caracterizado o ainda secretário-geral do PS. Se sebastianismo conformista tem sucedido neste período, vimo-lo da parte dos que asseveraram não ser possível qualquer outra alternativa.
A 15 de setembro de 2012, quando o país se levantou para manifestar a sua indignação com o que passos coelho e paulo portas estavam a destruir, os portugueses já se confessavam ávidos de quem lhes surgisse a propor uma alternativa credível para quanto estavam já a sofrer.
Esse foi o momento de revelação quanto ao que poderíamos esperar desta direção do PS: as circunstâncias surgiam-lhe muito acima das suas capacidades para as transformar.
“Qual é a pressa?” ou “Não vou prometer nada que não consiga cumprir” são expressões, que ficarão indelevelmente coladas a um político, que decidiu fazer uma demonstração prática e eloquente do princípio de Peter: estavam os portugueses à espera de encontrarem uma luzinha, mesmo que débil, ao fundo do túnel e o que viam do principal partido da oposição era a complacência mais ou menos renitente com as medidas de austeridade impostas pelo governo sob o alibi de provirem da troika.
Foi, porque o Partido Socialista não esteve à altura das circunstâncias, que a grande manifestação de 2 de março de 2013 já foi um doloroso desfile de gente triste e sem ter em quem confiar as suas aspirações de mudança. Tornava-se inevitável o que se viria a verificar nas autárquicas e nas europeias: um PS com vitórias pífias (também escandalizaria que, com tanta diatribe cometida pela direita, assim não fosse!), mas sem conseguir galvanizar os eleitores para a urgente necessidade de mudança.
Quando António Costa surgiu a disponibilizar-se para cumprir esse objetivo, é claro que suscitou o entusiasmo de uma grande maioria dos portugueses. E por isso mesmo, semana a semana, os auditórios onde expressa essa mesma vontade vão-se enchendo com quem se vem afirmar disposto a contribuir com o seu esforço e entusiasmo por modificar tais circunstâncias.
Se também quisermos ver aqui alguma manifestação do fenómeno sebastianista ele é encarnado pelos milhares de portugueses, que se confessam fartos de todos os sacrifícios impostos para fazer diminuir a dívida e afinal coroados com o seu agravamento até à atual dimensão insustentável. Porque António Costa rejeita que seja ele, só por si, a criar esse milagre.
Ele realizar-se-á mediante o contributo de todas as forças políticas, sociais e económicas, que acreditem na urgência dessa mudança e na criação das condições para que ela se torne possível.
Por isso, mais do que a frase de Ortega y Gasset, deveremos ter presentes as palavras de outro sábio, que tem a vantagem de muito profundamente ter conhecido a “alma lusa”: José Saramago. Foi o nosso Nobel quem reviu muito oportunamente as palavras do filósofo espanhol, concluindo: “Se o homem é formado pelas circunstâncias, então é preciso formar as circunstâncias humanamente”.
Não encontro melhor fórmula para classificar a agenda proposta por António Costa para os próximos dez anos: precisamos de um país em que sejam as pessoas a ditar os limites das circunstâncias! Com pressa e prometendo o que com elas será possível concretizar!
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