1. Não, não sou um masoquista. Poderia parecê-lo se me surpreendessem a ler ou a ver coisas impensáveis, mas convirá reconhecer que de quase todas consigo justificar o proveito.
Vem isto a propósito de, há um par de dias, ter-me disposto a ver o telejornal conduzido pelo Orelhas.
Eu sei: o tipo é abominável, não tendo ponta por onde se lhe pegue. E ridículo se considerarmos as suas pretensões a ás da literatura, que só a ele convencem, porque quem arriscou ler-lhe as estórias andou entre o vómito e a barrigada de riso.
O resultado veio a contento da expetativa: passou o genérico e ei-lo a irromper com a voz de quem anuncia catástrofes, descrevendo o país como um impressionante pasto de chamas. Passa a palavra aos repórteres nos locais e o resultado é o oposto do por ele descrito: sim, tinham acontecido alguns incêndios aqui e acolá, mas nem se assinalavam perdas de vidas humanas, nem sequer estas terão sido inquietadas o bastante para que se justificasse o tom dramático do pivot televisivo. Unanimemente os repórteres iam repetindo que as chamas, ou já estavam extintas, ou em fase de rescaldo.
Frustrado na possibilidade de espalhar o pânico nos espectadores eis que passa para outro drama, outra tragédia: um avião tinha caído no centro do país, quando combatia incêndios. Ora logo viu-se obrigado a corrigir o lapso, porque tratara-se de um helicóptero e nenhuma vítima havia a assinalar.
Nessa altura já estava ciente de que nada no figurão mudara para melhor desde que me sujeitara a ouvi-lo e mudei de canal. Mas dá sempre para questionar o que falta para declará-lo inepto para a função e recambiado para casa dando-lhe disponibilidade para dedicar-se aos seus presunçosos romances?
2. Outro pedante, que se tem numa conta muito mais elevada do que valem os seus escassos talentos é Boris Johnson, que está em riscos de consagrar-se o primeiro-ministro mais efémero da História britânica. Em poucos dias estoirou com o partido, perdeu a maioria parlamentar, justificou a insurreição dos deputados e dividiu o país como ninguém conseguira desde Cromwell. Razão para começar a ser conhecido pelos adversários como «BoJo, o palhaço». No «Libé», Laurent Joffrin comenta que BoJo pretendia manietar os eleitos. Mas confundiu o Rubicão com o Tamisa.
3. Não tenho ponta de simpatia por Macron, desleal para com o Partido Socialista, que lhe deu acolhimento como ministro, mas por si defenestrado quando, eivado de ambições presidenciais, fundou um partido alternativo com que tem (des)governado a França. Apesar de reconhecer que, acaso morasse no Hexágono e fosse eleitor, teria votado nele... mas apenas para evitar a vitória de Marine Le Pen. Na prática, ele tem procurado concretizar uma política de salvaguarda dos interesses capitalistas, que se revelam incompatíveis com os da maioria da população.
Lamente-se que os mais explorados e abandonados estejam iludidos nas virtudes da extrema-direita em vez de devolverem a força política imprescindível às esquerdas para que voltem a retomar os valores e objetivos da Revolução de 1789. Mas Macron vai provando do seu próprio veneno: não só em Paris, mas também noutras grandes cidades, os candidatos oficiais do seu partido contam com outros que, a ele vinculados, não aceitam as escolhas dos aparelhos.
Os macronistas chamam traidores aos competidores sem o seu aval. Afinal o carreirismo político, que apontavam aos partidos tradicionais, depressa tomou conta das hostes do fundado pelo ainda presidente francês.
4. Há quem tenha grandes azares na vida. O catalão que decidira plantar cannabis no terraço do seu prédio deveria estar feliz com a habilidade de ter a proibida cultura mesmo nas barbas dos polícias, que passavam amiúde pela sua rua. Até ao dia em que a Volta à Espanha chegou à cidade, as câmaras de televisão tanto acompanharam a corrida ao nível do solo e a partir de cima com recurso a helicópteros dando o ensejo aos polícias de descobrirem a marosca. Quase por certo agentes apreciadores do desporto velocipédico.
O ousado agricultor está atualmente atrás das grades a lamentar-se dos excessivos recursos investidos pelas televisões para darem conta dos dotes de uns quantos fulanos a andarem montados nas suas bicicletas.
5. Melhor sorte teve Maurice, um galo da ilha de Oleron, na costa atlântica francesa, a quem os vizinhos pretendiam que o tribunal proibisse de continuar a assombra-los todas as auroras com o volumoso canto, porventura obrigando a proprietária a silencia-lo à conta de uma eventual cabidela.
O tribunal a que recorreram não lhes deu razão e, pelo contrário, obrigaram-nos a pagar mil euros de indemnização à dona do réu a título de compensação por danos à sua merecida tranquilidade.
Dias atrás escrevia aqui sobre um vizinho que costuma chamar a polícia para queixar-se de um cão da vizinhança, que ladra incessantemente quando dá na rua com quem não conhece.
Maurice e esse competente vigilante urbano têm o azar de terem por vizinhos quem não quer compreender que um galo tem de cantar e um cão de ladrar...
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