sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Os bolsonaristas da língua


Reconheço que não foi muito ponderada a razão porque comecei por aderir ao novo Acordo Ortográfico. A exemplo de Almada Negreiros, que preferia ser espanhol a confundir-se com um Dantas português, também decidi algo semelhante tomando por bitola o detestado Vasco Graça Moura. Nos anos 90 o poeta cavaquista produzia diatribes odiosas contra os socialistas e justificava que por ele tivesse um ódio de estimação. Podia reconhecer-lhe a qualidade dos versos e das traduções, mas o homem em si - com que muitas vezes me cruzava nas Amoreiras quando levava a filharada ao Liceu Francês - justificava pensamentos pouco elevados.
Nessa altura costumava justificar a minha adesão ao novo Acordo com a frase: “se o Vasco Graça Moura é contra, eu só posso ser por!”. E estava resolvida a questão!
Mas logo a razão começava a tomar conta do assunto aferindo argumentos mais consistentes para complementar o que a emoção me ditava. E reconheci a dinâmica da língua a acompanhar a evolução das sociedades, dos valores e costumes, até sobretudo dos determinantes meios de produção. Constituía um absurdo que os «puristas» da língua apostassem em congela-la, em mantê-la tal qual era utilizada pelos pais e avós. Mesmo que esses ainda escrevessem «pharmacia», não pareciam consequentes com os propósitos ao regressarem a esse tipo de grafia.
Fundamento mais relevante viria a colocar, quando depreendi da prescindibilidade de letras, que deixaram de ser ditas na oralidade. Se pronuncio «ato» ou «exceto» para que vou escrever «acto» ou «excepto»? Os casos poderiam aqui multiplicar-se para justificar a consistência dos pressupostos legais em vigor e contra os quais se atiçam os tais «puristas», que agem com o fanatismo dos mais radicais salafistas. De facto não hesitam em mentir, em arranjar exemplos falsos para justificarem as suas absurdas posições, mormente considerando que o Acordo seria exclusivamente justificado pelo facto de normalizar a forma como se escreva em toda a Comunidade Lusófona. Ora, na verdade, estou-me bem borrifando para a forma como falam e escrevem os brasileiros, os angolanos ou os timorenses. Interessa-me apenas como falamos e consequentemente escrevemos de acordo com essa oralidade.
Adivinho que, por estes dias, os reacionários da língua - de que Nuno Pacheco no «Público» é um dos principais gurus - exultem com a oposição agora manifestada por Jair Bolsonaro contra o seu execrado Acordo. Alegarão razões acrescidas para fazerem o tempo voltar para trás.
Obviamente que voltarão a deparar com o fracasso que tanto os irrita. Podem, porém, consolar-se com o que os franceses designam como «les beaux esprits se rencontrent». Fazem, de facto, jus a que os consideremos os bolsonaristas da língua.

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