sábado, 29 de setembro de 2018

Uma América medonha


Há meio século, quando frequentava o secundário no barracão do que viria depois a chamar-se Liceu Nacional de Almada, tinha muitos colegas que sentiam particular adoração pela América. Lá ir equivalia à realização de um dos seus maiores sonhos e viver só não era formulado como possibilidade, porque pareceria tão inacessível quanto a Lua onde os primeiros astronautas não haviam ainda pousado.
O sonho americano nunca foi alternativa a considerar exceto numa altura em que a marinha mercante nacional dava já sinais da ruína em que cairia e uma hipótese para trabalhar nos atuneiros de San Diego foi considerada, e quase prontamente descartada. Que a terra do tio Sam estava longe de ser a das oportunidades já o constatara no contacto com os emigrantes de Newark, cujas vidas difíceis conhecera em 1976.
Essa miséria, sofrida por milhões de norte-americanos, viu-se espelhada no Relatório sobre a pobreza extrema e os direitos humanos no país de Trump, que Philip Alston produziu para a ONU no final do ano transato.
No seu demolidor retrato ele constata que:
- viu pessoas no limite da sobrevivência nos arredores de Los Angeles ou polícias em San Francisco a expulsarem sem abrigo dos locais onde pernoitam, escusando-se a arranjar-lhes alternativa;
- identificou pessoas pobres sujeitas a sucessivas multas por pequenos delitos, levando-as a um insuportável endividamento, que as atira para as prisões privadas para serem escravizadas para benefício dos cofres privados e municipais;
- encontrou pessoas a necessitarem de urgentes cuidados dentários para os quais não possuíam recursos, acabando por ficarem desdentadas;
- testemunhou pátios alagados por esgotos domésticos em Estados que se desresponsabilizam de quaisquer serviços sanitários;
- comprovou a existência de famílias e comunidades devastadas pela toxicodependência gerada pelo tráfico ilegal ou pelas receitas subscritas por médicos sem escrúpulos;
Olhando para os indicadores comparativos com outros países, mormente os da OCDE, Alston conclui que nos EUA:
- se gasta o dobro per capita com os cuidados de saúde, apesar de terem menos médicos e camas de hospital;
- a taxa de mortalidade infantil é a mais elevada e a esperança de vida a mais curta;
- se batem records na incidência da obesidade, mas fica em 36º lugar a nível mundial quanto à água e ao saneamento básico;´
- lidera ainda a taxa de encarceramento a nível mundial, a da pobreza nos jovens e a da desigualdade entre os mais ricos e os que nada têm (índice Gini).
Quando Trump exulta com uma América, que apresenta como um paraíso aonde todos os desvalidos querem aportar, bem pode limpar as mãos à parede: os Estados Unidos têm parecenças cada vez mais evidentes com os piores cenários do Terceiro Mundo.

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