A morte de Mário Soares e as reações, que anda a suscitar nas redes sociais, é um bom pretexto para voltarmos a um dos temas mais determinantes do que pode ser a evolução das sociedades em que vivemos: o de se viverem as circunstâncias pelo primado da emoção ou o da razão, deixando muitas vezes que uma e outra não sejam miscíveis em doses sensatas.
Que o desaparecimento de um dos principais construtores da nossa Democracia suscite emoções de pesar é o mais natural, muito embora muitos dos seus admiradores, entre os quais me incluo, considerem inevitável - e até desejável em função do sofrimento do próprio e dos familiares nestas últimas semanas - este desenlace.
A verdadeira justiça à memória de Mário Soares não reside em fazer-lhe enfáticas declarações momentâneas - mesmo que alguns o expressem estimavelmente por via da poesia! - mas a de lhe garantirmos o lugar na História, que ele merece. Todo o seu percurso político é tão merecedor de biografias em estilo jornalístico para consumo do grande público, como de teses académicas pelas quais se estudem as suas opções nas diversas fases da vida portuguesa, antes e depois do 25 de abril, equacionando-lhe os aparentes erros, que acabaram por se revelar juízos muito acertados, quer nas decisões determinantes para que o país deixasse a condição de cantinho à beira-mar plantado e se integrasse de pleno direito no grande concerto das nações europeias… e não só!
As emoções negativas dos que sempre o odiaram devido ao seu papel na descolonização e por isso o vilipendiam, não querem aceitar o óbvio: não eram eles que estavam acertados com os rumos da História numa altura em que quase todas as demais potências europeias tinham reconhecido as independências às suas ex-colónias, mas Mário Soares e quem com ele, nomeadamente Melo Antunes e Almeida Santos, acautelaram a que o processo se passasse com o mínimo de custos em vidas humanas e em prejuízos materiais para os visados.
Que outro país se pode gabar da forma como integrou centenas de milhares de retornados, apesar do óbvio prejuízo dos que os viram então serem objeto de discriminação positiva nos empregos, nos créditos bancários, na atribuição de casas camarárias, etc.?
A grandeza de Mário Soares também esteve na forma como, sempre na beira de um vulcão prestes a implodir, soube agir de forma a acalmá-lo, a impedi-lo de causar grandes danos.
Há também os que o detestaram por ser Socialista, gostar da palavra «camarada» e dos punhos erguidos - toda uma simbologia que gostariam de ver desaparecida. Mas, azar o seu, continua a haver muitos socialistas, esperemos que cada vez mais!, apostados em não prescindir dos seus símbolos e, sobretudo, dos seus valores.
O ódio de uns e de outros, expresso em insultos, em mentiras, em calúnias, são importantes para que saibamos quem eles são: a reação à morte de Mário Soares tem servido de pedra-de-toque para, pessoalmente, fazer uma barrela na lista de amigos no facebook, de modo a só nela manter quem efetivamente merece.
O preocupante é, porém, serem essas emoções indignas as que andam a valer aos Trumps e Farages deste mundo os votos com que pretendem fazê-lo andar para trás.
Anda muito esquecido um psicanalista, que era muito lido na época da minha juventude - Wilhelm Reich - e cujos livros valeria a pena revalorizar quanto à forma como neles descreve a psicologia de massas do fascismo. Que é precisamente pela criação das emoções negativas no espaço público, escolhendo bodes expiatórios (os negros, os muçulmanos, os gays, os refugiados, os mexicanos, etc.) como culpados de tudo e mais alguma coisa, e assim arregimentando incautos, que não percebem como estão a dar fôlego aos seus principais inimigos de classe.
Quando as várias direitas e os próprios comunistas fizeram de Mário Soares o alvo privilegiado dos seus tiros tinham objetivos opostos mas concertados: uns porque pretendiam impedir uma sociedade mais igualitária, os outros porque a queriam acelerar sem as condições sociais para a tornar possível no imediato.
Uns e outros bem poderiam olhar com atenção, e isentando-se momentaneamente das suas sombrias paixões, quanto ao que dizem alguns expoentes importantes das áreas ideológicas em que se reconhecem: se podem expressar livremente o seu pensamento, mesmo que ele seja disparatado, muito devem à liberdade conquistada graças a Mário Soares. E se os comunistas mais ortodoxos, aqueles que ficaram presos no momento histórico em que foram votar em Mário Soares só porque Álvaro Cunhal assim ditou, muito ganhariam em ouvir dirigentes como António Filipe ou Carlos Carvalhas para saberem o que o momento atual já lhes deveria ter ensinado.
Mas a necessidade de olhar para tudo isto pelo lado da razão também diz respeito aos socialistas, que acham errada a continuação da visita de Estado, que António Costa está a fazer à Índia, não a interrompendo para comparecer fisicamente no funeral.
Ora, este irá ser um dos principais acontecimentos diplomáticos do nosso país em 2017, foi preparado durante muitos meses por equipas de parte a parte empenhadas em que as relações económicas entre os dois países tenham uma nova dinâmica de ganhos mútuos e será para Portugal um dos parceiros com maior potencial dado ser dos antigos BRIC’s o único, que mantém uma evolução de crescimento do PIB muito significativa.
Quer isto dizer que, em nome das emoções, o primeiro-ministro abandonaria todos esses objetivos deixando nos anfitriões a sensação de terem de pouca relevância perante algo que só para os visitantes terá efetiva importância? Os que criticam Costa terão capacidade de se libertarem um momento das suas emoções e ponderarem racionalmente para o que andam desaforadamente a apregoar?
A menos que não seja a razão eticamente mais irrepreensível a motivá-los, mas os interesses oportunistas de quem olhou para a decisão de António Costa e viu nela mais uma tentativa em denegri-lo, em sabotar-lhe o esforço por construir um país de acordo com os objetivos expressos na Agenda para a Década.
Vale-nos que, a exemplo de Mário Soares, que sempre foi indiferente aos ataques das gelatinosas criaturas, que sempre o pretenderam diminuir, também António Costa tem o mesmo carácter, a mesma capacidade para ignorar as mesquinhices de alguns “camaradas” despeitados por não terem conseguido alcandorar-se aos lugares, de que o seu narcisismo doentio os levaria a julgarem-se merecedores.
Triste figura têm tido desde ontem alguns órfãos do segurismo (mesmo que muito dignamente o seu antigo títere se tenha honrosamente afastado!) e frustrados do neosegurismo em que se converteu o movimento dos que acompanharam Daniel Adrião na disputa com António Costa no último Congresso Socialista.
O sucesso do governo neste último ano - que muito deve ter agradado a Mário Soares nos seus derradeiros meses de vida! - prova que, quando a política é norteada pela Razão consegue prevalecer contra as novilínguas, as pós-verdades e outros artifícios dos que, através da exploração das emoções negativas das massas, as querem arregimentar para os seus ínvios propósitos.
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