1. Há males que vêm por bem! Segundo Manuel Vasquez Montalban, que escreveu saborosa prosa numa apócrifa autobiografia do ditador Franco, este repetia aquela fórmula até à náusea. Quem o rodeava já a não podia ouvir. Mas ela ganha todo o sentido com a revogação da lei que reduzia provisoriamente a TSU para os patrões, e teve o condão de despertar as esquerdas para os perigos de darem Passos Coelho como morto e enterrado. Bem se enganaram ao julgarem-se de mãos mais soltas para se afirmarem perante o governo de António Costa. E este para julgar desnecessárias as discussões de assuntos mais polémicos com os tácitos parceiros, por ter garantido o assentimento do PSD em matérias que, pela sua natureza, nem sequer se atreveriam a por em causa.
A viragem estratégica da frágil liderança de Passos Coelho tem o condão de desdizer aquilo que jornais e televisões davam por garantido: era cadáver adiado á beira de receber a extrema-unção. Afinal, como nos melhores filmes de George Romero, os zombies recuperaram alento e saíram ao ataque.
Momentaneamente acantonadas nas respetivas posições, cabe às esquerdas, através da reativação do excelente trabalho produzido por Pedro Nuno Santos na contínua ação de contacto e negociação com os parceiros da maioria, evitar recorrências do passo em falso hoje confirmado na Assembleia da República.
Na entrevista ao «Público», Catarina Martins confirma a intenção do Bloco em segurar o governo durante os quatro anos da legislatura. E até se lhe pode dar acrescida razão, quando saúde a aparente precariedade do governo nas circunstâncias atuais: “Atrevia-me a dizer que a democracia ganha com situações mais complexas do que com situações simples, em que se pensa pouco nas consequências do que é feito e se arrasa muitas vezes o que foi feito durante anos.”
É, pois, tempo de haver sensatez nas esquerdas de forma a que, sem grandes danos, se devolvam os zombies às merecidas sepulturas.
2. Na mesma entrevista, Catarina Martins aborda, igualmente, a sempiterna questão das divergências com o governo sobre o papel de Portugal na União Europeia e na reestruturação da dívida. Essas diferenças de perspetiva levam os Assis ou os Marques Lopes a pressuporem - erradamente! - que haverá bastante mais a unir o PS ao PSD do que aos partidos à sua esquerda.
Tais opinadores iludem a verdadeira questão: o separar de águas não se faz por tais questões, mas pela aceitação ou rejeição das receitas neoliberais. Ora, à exceção de um isolado punhado de resistentes, a grande maioria dos socialistas mandou ás urtigas as políticas baseadas nas privatizações, na desregulação e na flexibilização das leis laborais, que o execrado modelo neoliberal pressupõe incontornável com o beneplácito das instituições europeias, quase todas controladas pelo PPE. Hoje, a maioria dos militantes e simpatizantes socialistas - e, nos últimos anos, Mário Soares foi tenaz defensor desta tendência! - pretende mais igualdade, justiça e educação, sem resquícios da malfadada Terceira Via.
Numa altura em que os acontecimentos estão a reacelerar o curso da História, bastam entropias como o Brexit, o protecionismo à la Trump ou a previsível independência da Escócia, para gripar o castelo de cartas, seriamente instabilizado pela perversão do projeto europeu. E, muito me engano se, nos próximos anos, não der com as esquerdas a convergirem sem tibiezas na reinvenção de tal sonho, conquanto ele seja pensado em função dos seus cidadãos e não das oligarquias, que dele se apossaram como forma de melhor abocanharem uma mais obscena acumulação de capital!
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