Andava pelos doze, treze anos, quando o Padre Sobral questionou o pequeno grupo de alunos de si mais próximos naquele ano no Liceu de Almada e de que eu fazia parte: “Já ouviram falar de Mário Soares?”
Foi essa a primeira vez que o seu nome me veio à baila, coincidindo temporalmente com o episódio da Capela do Rato, ocorrido por esses dias. Embora desconfiado da vacuidade, senão mesmo nocividade das religiões, ainda ouvia com reverência esse professor que nos demonstrava essa dissociação de setores católicos com o regime já em acelerada decadência depois do seu mentor cair da abençoada cadeira.
Voltei a sentir a presença desse ainda quase desconhecido durante a visita de Marcelo Caetano a Londres, por lhe saber a responsabilidade pela oportuna denúncia dos crimes praticados no Continente e nas colónias tanto mais que estavam a chegar à Europa os ecos do massacre de Wiriamu. O padrinho do atual inquilino de Belém julgava conseguir apoio sólido nos anfitriões à conta da velha aliança centenária e viu-se acossado pela condenação vigorosa dos manifestantes antifascistas, que tinham Mário Soares como grande inspirador.
Só senti, porém, a sua presença física a 28 de abril de 1974, quando regressou a Portugal no mesmo comboio em que, igualmente, vinha o meu futuro cunhado. Indo esperar este último a Santa Apolónia acabei por assistir ao momento histórico da sua primeira alocução pública em liberdade da varanda do primeiro andar do edifício da estação.
Seguiram-se muitos anos de encontros e desencontros, à medida do que sobre ele ia sentindo, umas vezes discordando com indignação (mas, como dizia Ferro Rodrigues, hoje reconhecendo ter tido ele razão na maior parte delas!), outras apoiando-o com grande empenhamento. Nos últimos anos, ainda mais porque, além de referência moral, ele personificava a esquerda do partido onde eu passara a militar em meados dos anos oitenta. Sobretudo quando se lhe sentiam as reservas para com a direção de António José Seguro, razão para se ter comprometido em decisivas iniciativas públicas com quem se reivindicava das várias esquerdas, preparando o caldo de cultura, que tornou possível a atual maioria parlamentar.
Com o mérito de quase sempre antecipar as tendências, que justificavam as grandes decisões determinantes para o país em que hoje vivemos, ele foi sabiamente incoerente na gestão das suas qualidades e das suas falhas. Como o conseguem ser os grandes homens, os que a História regista pelos melhores motivos.
A grandeza da sua personalidade manifestou-se em muitas ocasiões, mas sublinho as de três tipos: na coragem com que enfrentou, mesmo com sérios riscos para a sua integridade física os que coartavam ou pretendiam coartar as grandes liberdades aos portugueses; quando dedicou a mais descontraída indiferença aos mesquinhos e mentirosos, que sobre ele inventaram mentiras para justificar ódios, que só os desqualificavam; e na sua reiterada profissão de fé ao socialismo, nunca precisando de se dizer “social-democrata” para encobrir os verdadeiros valores em que acreditava, os do socialismo democrático.
O seu desaparecimento só o é na existência enquanto corpo. Na realidade, ele que não acreditava em almas imortais, já tinha ganho a eterna presença no nosso imaginário coletivo pelo combate de décadas em prol do que mais devemos prezar: a Liberdade, a Justiça e a Igualdade. Se há quem mereça um lugar relevante na História portuguesa das últimas décadas é, indubitavelmente, ele.
P.S. A notícia da morte de Mário Soares confirmou a crapulice de uns quantos tristes nas redes sociais, cujo ódio tacanho os leva a multiplicar insultos, que só os definem naquilo que são.
Mas se a esses podemos ignorar por não merecerem um centésimo de segundo da nossa atenção, já o mesmo não se passa com alguns ditos socialistas, que vieram criticar António Costa por não interromper a importantíssima visita de Estado à Índia.
Há meses que se anda a constatar uma singular aliança entre os antigos apoiantes de Seguro com os de Daniel Adrião, como se comprovou nas listas deste último para o Congresso. Agora vai-se tornando mais evidente o sucessivo aproveitamento dos que integram tal aliança na crítica a António Costa, sempre que julgam ajustada a ocasião. A sua baixeza revela-se nesta evidência: é sórdido utilizarem-se da morte de alguém com a dimensão de Mário Soares para os seus indigentes objetivos políticos. Há linhas vermelhas nos comportamentos, que um socialista nunca deve ultrapassar e uma delas é a de utilizar-se da morte de alguém para o que julgam significar ganhos políticos. É triste, é profundamente lamentável.
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