No recém-estreado filme de Miguel Gonçalves Mendes sobre Eduardo Lourenço - «O Labirinto da Saudade» - revisitamos a polémica afirmação do filósofo em como, influenciados pelo caldo de cultura herdado dos 48 anos de ditadura, todos nós somos algo salazaristas na forma como olhamos para o mundo à nossa volta.
Essa ideia sempre me causou justificada urticária, porque sempre me posicionei a contracorrente das formatações de educação e de manipulação do pensamento autoritário, oriundos dos centros de poder, inicialmente familiares, e depois escolares e profissionais com que me deparei até hoje. Poderia ter adotado a lógica anarquista de me rebelar contra todo o tipo de poder, mas ela cedo me pareceu fútil e ineficiente. Até porque, assumindo funções de quadro superior nas empresas onde trabalhei até me reformar, era obrigatório o correspondente hábito (fato e gravata) e gerir o que me era destinado enquanto tal. Mas aí a flexibilidade estratégica adquirida na assumpção ideológica do marxismo, bastou-me para que, olhando racionalmente para o longo prazo, mantivesse resiliente postura no curto e médio prazo.
Reconheço, porém, que esse salazarismo latente continua presente de muitas maneiras no nosso quotidiano, não se cingindo ao lamentável espetáculo televisivo, que promoveu o Botas como a personalidade histórica mais admirada por quem nele quis dar aval de tão absurda estupidez. Mais grave é manter-se esse fascismo nas histéricas bravatas dos que, por estes dias, querem fazer Stop à eutanásia, impondo as suas ideias a quem com eles radicalmente discorda. Ou quando hordas de arruaceiros entram na Academia de Alcochete, quais trogloditas da antiga Legião Portuguesa, para defenderem um decadente autocrata decidido a vender caro o seu mais que merecido despedimento.
Abstraindo-nos, porém, desses exemplos mediaticamente mais evidentes, o salazarismo larvar também acontece em coisas aparentemente inocentes, mas que estão longe de o ser: esta manhã levámos o gato à vacina e a televisão da sala de espera presenteava-nos com um daqueles inenarráveis programas da manhã (parece que os da tarde também não se revelam menos idiotas na essência!) em que a banalidade não se cola apenas ao mal absoluto, mas à indigência mental, que serve precisamente os propósitos dos apostados em reduzir os cidadãos a inofensivos mentecaptos capazes de tudo acatarem. Naquela altura havia uma petulante balzaquiana minhota toda vaidosa com os seus «casaquinhos» e com os seus «folhinhos» de que se dizia particularmente especialista. Lá voltou inevitavelmente a memória do O’Neill que, sobre esse passado tenebroso, salazarento, dizia ter sido tempo de Portugal no diminutivo, em que o respeitinho é que era bonito! Ora o que mais devemos execrar é esse tipo de respeitinho, porque é o que nos inibe a indignação perante tudo o que está mal e urge transformar!
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